quinta-feira, 4 de maio de 2017

Moça dos Olhos Cinza


Assobio uma canção enquanto caminho sozinho na rua
O mar ao fundo espelha o cinzento do céu
As nuvens passam, lentas, em direcção nenhuma
E eu tiro o relógio do bolso, que continua parado...

(Era perto das onze da noite quando a vi
Unhas mal cortadas, cabelo em desalinho
Lábios gretados, sinal no queixo
Mãos grandes, cheiro a fumo e a bebida
Encostava o corpo magro junto à janela;
Na mão esquerda o cigarro adormecido...)

Chuto uma pedra, tarde aborrecida...!
Uma cameleira ensombra o caminho
Subo o muro da senhora da casa dos gatos
E apanho uma camélia vermelha...

(Riem-se as pessoas, lá fora chove
A minha cadeira geme estando eu sentado
Levanto-me, pouso o copo, puxo-lhe um braço;
Ela apaga o cigarro que atira pela janela
Eu olho-a nos olhos cinza que enfeitam o rosto ossudo
E ela sorri-me com os seus dentes enormes...)

Passo pelos vidros limpos de uma loja
Com as mãos alinho o cabelo, arranjo o casaco
Limpo os sapatos ao musgo das pedras
E olho e torno a olhar a minha boca (espera-se que) limpa...

(Um homem senta-se ao piano com as mãos que tremem
Começa a tocar, ri-se sozinho, as notas ao lado
Ensaio uns passos de dança sem jeito algum
Com um braço seguro-lhe a cinta estreita
Com o outro o pau de braço que ela tem
E ela gira e dança em torno de mim e de si própria...)

Já entro pela porta do café da noite de ontem
A minha cadeira, não a vejo (quiçá partiu-se...)
Sento-me no banco alto do balcão
- A rapariga dos olhos cinza, quem a viu? - Desculpe, por aqui ela não passou...

(Já não existo, já não sou eu, já só é ela!
O vestido roxo está-lhe largo, leva os meus pensamentos
Tão mau cabelo, tão má boca, tão mau corpo
E no entanto toda ela é dança, ar, vento, sonho!
Adoro-a, a ela e ao fumo que ela traz
E, secreto, quero ser o álcool que ela bebe...)

O relógio está parado, não obstante o tempo anda
Como o sei? Pelos copos que já bebi.
Bato com a palma da mão no balcão
- A rapariga dos olhos cinza, quem a viu? - Desculpe, já partiu de madrugada...

(criiiich! click! tick!
Secretamente ouço qualquer coisa a partir-se
Foi comigo, talvez o coração, se o foi por dentro...)

Olhem-me, esta é que foi boa!
Anda um homem a apanhar camélias porque rosas não viu
São vermelhas, disfarçam bem, não se pode querer tudo
Veste o melhor dos casacos como se não tivesse mais velhos para romper
Arranja o cabelo com as mãos porque a água está cara
Limpa os sapatos ao musgo porque não tem nenhuns mais limpos
Nem os mandou limpar porque não tem dinheiro
E talvez até tenha, mas não fica nem com um tostão furado para se consolar
Só porque se perdeu por uma mulher sem eira nem beira!
Olhem que isto já dizia o Poeta muito bem, o mundo anda desconsertado
E enquanto ele se desconserta e conserta ou o que o valha esqueçamos, que a vida é breve...

(Escorre sangue da minha mão, limpo à camisa
Alvíssaras! O coração está inteiro, graças a Deus,
Afinal foi o copo que eu apertei com força.)



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