sexta-feira, 19 de maio de 2017

Era uma Noite


Era uma noite
Era uma noite de fim de Verão
De fim de estação e começo da nova
Aquela estação em que os dias parecem ter mais que vinte e quatro horas
Aquela estação em que não envelhecemos
Aquela estação que parece durar para sempre
E era uma noite de fim de Verão
E em que os sonhos maiores ou mais ingénuos
Pareciam caber na palma da mão...

Era uma noite
Era uma noite de fim de Verão
Os jardins cobriam-se das últimas rosas
E a nossa juventude crescia como nascem as flores`
Nascia como nascem as ondas que embalam os navios
E eu era jovem e tu eras jovem
Perdidos numa noite de fim de Verão
E em que as rosas rubras dos quintais
Pareciam nascer no nosso coração...

Os teus olhos
Os teus olhos que eram duas contas verdes
Eram botões jovens de camélias por florir
Camélias brancas como como eram brancas as nuvens
Que eram céu dos nossos devaneios
Em que os meus olhos eram o espelho dos teus
Os teus olhos, duas camélias por florir
Dois botões, que eram duas contas verdes
Eram o advento da Primavera por vir...

Sorris para mim
É com os teus olhos que sorris para mim
Naquela linguagem muda que só os pobres percebem
Os pobres de palavras que não conhecem as suficientes para se exprimirem
Ou talvez sejam as palavras que são pobres para a riqueza do coração
E sussurras-me ao ouvido melodias que toco ao piano
Não são necessárias palavras, são os dedos que falam
E falam daquilo que pobremente os olhos dizem
Falam de amor e de sonhos em sons que embalam...

Abro-te os braços
Abro-te os braços e escondo o meu rosto no teu peito
Que importa todo o tamanho do mundo
Se podemos criar um mundo ainda maior?
Abres as tuas asas, as tuas grandes asas negras
Pois negro é também o preço deste mundo
São quentes as tuas asas dentro do meu peito
Uma luz ainda assim branca acende e aquece
Pois de o amor ser amor nunca senti de outro jeito...

Mas fomos ingénuos
Mas fomos ingénuos como os jovens o são
Crendo que o Verão poderia durar para sempre
Crendo que todas as ondas embalam os navios
Crendo que os nossos corações eram duas rosas rubras
E crendo que as rosas viveriam para sempre
Mas fomos ingénuos como sempre soubemos ser
Quando o mesmo Verão que nos traz as flores
Com o mesmo calor as pode fazer arder.

Aqueles sonhos
Aqueles sonhos vãos esvaíram-se como fumo
E as nuvens brancas que eram o céu dos nossos devaneios
Trouxeram tempestades que revolveram os mares
Trouxeram tempestades que afundaram navios
E nós, dois tolos, duas criaturas desprovidas de juízo
Atirámo-nos ao mar pelos sonhos que se afogavam
E esquecemo-nos que se esvaíam como fumo
E ventos perdidos que nunca as mãos agarravam.

Olha-me e vê!
Olha-me e vê as minhas mãos cravejadas
As rosas que murchavam agarrei-as com fé
Agarrei-as tanto que foi a minha carne que ficou nos espinhos
E não os espinhos que ficaram na carne
Os cabelos brancos tenho-os na alma, não na cabeça
Da juventude que passou resta o meu rosto
E os meus olhos que foram o espelho de algo mais
Hoje são o espelho de um quarto vazio.

Encolho-me
Encolho-me e durmo, faz frio
Faz frio e passou o Inverno
Que afinal nunca o Verão duraria para sempre
A minha alma é um tapete de camélias maceradas
E as pétalas que recolhi dos teus olhos murchos
Enterrei-as dentro de rocha e terra dura
Na terra e pedra dura que restou dos jardins
Como a única lembrança do tempo das flores.

Os tempos passam; é Verão
E é também uma noite de Verão
Não é uma estação nova, é a mesma todos os anos
É o mesmo que há-de vir quando o meu rosto envelhecer
É o mesmo que trará as flores e que as queimará ele mesmo
E, numa sala perdida, oculta nas sombras
Levanto a tampa do piano que eu sou
A melodia é sempre a mesma, ano após ano
Que ecoa nas paredes frias do meu espírito
E hoje és o anjo negro que dança nos meus sonhos
As pessoas aplaudem, é bonita a música
Felizmente foi mais uma vez que as agradei
Eu levanto-me, agradeço e agarro o meu peito
Quando de sorrir o meu coração já não pode
E é ao ver pétalas perdidas nas teclas brancas do piano
De camélias escuras, sem perfume ou brilho
Que entendo que ainda são os teus olhos murchos que eu toco
Os teus olhos antes verdes como dois botões verdes
Que plantei num canto perdido do meu ser
E no meu coração a rosa rubra que ele foi
(Apercebe-se agora o meu espírito desfeito)
Só resta agora, após sonhar e perder,
Um espinho solitário que mo segura no peito... ...


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