segunda-feira, 1 de maio de 2017

Vagão n.º 37/A


É meio-dia, sei-o pelo meu relógio
É meio dia e ainda viajo no vagão 37/A
Ao longe, erguendo os seus troncos nus,
Vejo, esbatidas, as árvores da minha pátria...

Eu estava a ler; que lia eu?
Um livro antigo, o título mal se lê(!)
Mal se abre, mal se desfolha,
As folhas esqueceram o seu lugar e voam pelo vagão
E eu, que não tenho vontade de as apanhar,
Afasto a cortina e olho pela janela.
No meu colo, vermelhas e vistosas,
Levo rosas que trouxe da minha pátria...

No céu voam as aves em -v
Regressam para as suas terras
Só eu me afasto da minha pátria
À medida que me deixo levar pelo vagão 37/A...

37... Tantos anos quantos vivi no meu país...
Pigarreio; da mala tiro a garrafa de vinho
Que bebo sofregamente pelo gargalo.
É amargo, este vinho! Comprei-o dias antes
Lá na loja de vinhos junto à minha casa
Mas continuo a beber enquanto vejo as aves em -v
Por nenhuma razão em especial
-V de vinho, -v de vagão, -v de vício...

Esqueceram-se-me os cigarros...!
Mas como passarei horas sem os cigarros
Para me servirem de ópio do que deixo da minha pátria?
Cruzo a perna, fecho (o que resta) do livro
Cheiro o perfume que resta das rosas
E, olhando teimosamente o horizonte,
Só vejo mar
E mar
E ainda mais mar
E mar outra vez
E ainda tenho tempo de ver mais mar
Olha, há mais mar à frente!
Aposto a vida em como depois daquela curva há mar outra vez!

Mar, mar e mar!
De tanta água ver já fiquei com sede!
Bebo, de novo, mais um golo de vinho...

Ao longe vejo um veleiro
Dos que via nos mares da minha pátria
Uma vez experimentei velejar um, por teima,
Não sabia, o veleiro... pffffiu! Foi-se! Logo mar adentro!
E tive que trabalhar, note-se bem,
Tra-ba-lhar
Com todas as letras
Para pagar a dívida que ganhei...
Hoje vou no vagão 37/A
E levo comigo a última prestação que me "esqueci" (acham que sim?) de pagar.

...
Não tenho comentários
Acho que estou embriagado...
... Xô-xô, gato com três olhos
Que fazes a olhar três vezes para mim?
Não tenho mais nada a dizer, o vinho acabou!

(*risos)

Depois de tudo isto, aprendi hoje algo muito importante:
Enquanto for vivo, não voltarei a beber vinhos da loja ao pé da minha casa...

(*crrrrrrrrrrrrrrriiiiich! klang! ktung!
Um solavanco estremece o vagão 37/A;
Eu desperto do meu sono, engulo em seco
E levanto as malas caídas pelo chão...)

Quanto tempo terá passado?
Sinto-me como se já tivesse corrido quilómetros
E já não sinto o cheiro das rosas...

Olho o meu pulso: não sei as horas, o relógio parou;
Cantarolando entredentes uma canção antiga
Limpo os óculos com a manga do casaco
Fecho a velha cortina e abro o meu livro
Numa página ao acaso (das que ainda restam);
Os meus sonhos dispersam e adormecem
Nos duros bancos de madeira do vagão 37/A
E, maceradas e secas, estreito contra o peito
Aquelas que foram as rosas da minha pátria...


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