terça-feira, 25 de abril de 2017

O Filho Pródigo


Lento caminho pela estrada
Uma estrada deserta e árida, em linha recta
A minha vida toma a direcção da estrada
Sentido único, só comigo.

(Perdido no presente o passado é o que tenho
Ah, minto!
A agradável memória do meu soldadinho de chumbo traz-me uma sensação de alegria imensa.
Tinha um fato vermelho, o meu soldadinho
Com os botões dourados com uma linha dourada
E um nariz pequeno como o da minha mãe.)

Deixo uma pegada na terra molhada
Seguramente a única coisa que deixarei para o futuro
Não cultivei a minha vida
Quero água, mas o meu cantil está vazio
Tenho sede, mas o meu peito está vazio como o cantil...

(A minha mãe, oh, a minha adorada mãe!...
Há quanto tempo, minha mãe, que fugi de mim, de ti, de todos...
Quantas vezes cantei sozinho as tuas canções...
Ainda tenho sonhos com o avô, sabes...
Tenho medo que me leve sem piedade.
Hoje levarei um ramo de flores para ti.)

Vejo lírios à beira da estrada
A minha mãe adora lírios, colho-os para lhos dar
Brancos como os cabelos da minha avó.


(E a mina irmã? A minha pequena?
Vou ensinar-te, irmã, a ver as nuvens

Que não são brancas como os lírios, mas de todas as cores
Que são azuis, cincentas, vermelhas, laranja e cor-de-rosa,
Como as fitas que te amarram as tranças...)

Tropeço; cai-me a caixa de cigarros
O meu pai deu-mos,
Nunca os fumei,
Nunca queimei os meus pulmões,
Não obstante queimei a minha vida...

(O meu grave pai vai estar sentado no cadeirão do pátio
Com o seu cachimbo do lado direito da boca
O bigode negro fazendo curvas nas pontas
E eu vou fugir quando me falar do avô, seu pai
E eu vou pedir, chorando, que o avô não me venha buscar...)

Ah, a minha vida tão mais perto!
De volta, enfim, a cada memória que perdi.
O pinhal vai no fim, a luz está mais forte
E o meu coração enche-se-me com uma alegria de criança...

(Avó, tenho saudades tuas
Tantas cartas escrevi enquanto estive fora!
Nunca tas mandei, não tinha coragem
Apesar de saber que não guardas a zanga do meu pai ou a mágoa da minha mãe.
Sei que me entendes, mas não o entendi.
Tenho saudades, avó, muitas...
Ainda hoje penso nas noites à lareira e nas tuas histórias...)

Ah, a minha casa!
É a minha casa que vejo ao fundo!
Despojo-me dos meus bens, esqueço a caixa de cigarros
E estreito os lírios contra o peito
Não sou mais homem, sou criança
E corro de braços abertos como quando queria beijar a minha mãe.
O coração está descompassado, o rosto lívido
E eu abro as portas envidraçadas de rompante.

Minha mãe!
Meu pai!
Irmã, abraça o teu irmão!
Avó, o teu menino voltou!

Mãe, mãe, sou eu!
Não ouves a minha voz?
Trago-te lírios, as tuas flores preferidas
Mãe, vem buscar-me às escadas, que eu tenho medo do avô...

Os meus brinquedos! Estão todos cá!
A minha boneca de trapos ainda sorri de contente!
Os comboios estão no mesmo sítio em que os deixei!
E, oh, que alegria!
O meu soldadinho de chumbo!
Mãe, mãe, não me ouves? Onde estás?

Pai, o teu filho voltou!
Trouxe a tua caixa de cigarros
Fumá-los-emos juntos no pátio
E eu contar-te-ei as minhas aventuras...


Então, mãe?
Tu nunca foste assim...

Não ouves, não respondes...
Pai, onde estás?
Onde está a minha irmã?
Onde estais todos?

Avó, vem pegar no teu menino!
Avó, voltei para ti!
Dar-te-ei a ler as minhas cartas
Vem pegar-me ao colo, contar-me histórias!
Haverá novamente alegria nesta casa!
Acendamos a lareira,
Abramos as janelas!

Mãe, pai, onde estais?
Avó, tu nunca me fizeste isto quando eu te chamava!

(No pátio o cadeirão está coberto de folhas secas,
O jornal velho jaz ao lado
E o cachimbo partido arrasta-se com o vento
As janelas empenaram com o tempo
E a lareira está tão húmida que já não acende...)

... Minha mãe...?

... Meu pai...?

... Minha irmã...?

... Querida avó...?

... Alguém...?

Não esperaram por mim!
Perdi-os para sempre!
Não tenho nada, não sou ninguém
E não recuperei a minha vida...!

Perdoem-me!
Sou um fracasso!
Avó, perdoa-me...
Falhei para contigo e para todos!

(Longe toca o sino das horas
Observo longamente o cachimbo de meu pai
E os lírios para a minha mãe perderam-se com o tempo...)

Já nem me lembro do que fui
Sou a sombra do que fui outrora
Não há futuro
Resta-me o passo lento dos dias
Mais nada...

... Avô, onde estás?...
... Avô, já não tenho mais medo de ti...

Tenho sono, muito sono,,,
O vento já não me incomoda
Afasto os lírios murchos
Esqueço o cachimbo partido
E pouso o soldadinho de chumbo
E, sob a égide atenta do meu avô
Encosto-me a uma estátua em pedra
Fecho os olhos como uma criança
E sonho com as canções da minha mãe...


sexta-feira, 21 de abril de 2017

A Rapariga de Metal


Numa casa à beira-mar
Numa praia prateada
Viveu um grande inventor
Com a sua esposa amada.

Eram felizes (como não?)
Amavam-se co'amor profundo
E sabiam vencer juntos
As maiores penas do mundo.

Contudo algo faltava
Não se sabia o que seria
Mas a esposa disse "Um filho
Nos trará mais alegria!"

"Uma menina!" concordaram
Esse desejo assim ficou
E nem um ano passara
E o dia feliz chegou.



O inventor, tão inquieto,
Bem esperava de olhos baços
Pela menina adorada
Que iria ter nos braços.

Mas a Sorte e o Destino
Algo tinham planeado
E se uma moça nascera
Outra cumpriu triste fado.

Eram duas, lho disseram
Gémeas, mas ninguém previra
E se uma nasceu saudável
Outra mais frágil morrera.

E o inventor derrotado
Olhou o céu com rosto langue:
Tudo pudera inventar
Menos p'ra salvar seu sangue!



Pensou então remediar
E por fim o coração
Lhe disse aquela que era
A possível solução

E alguns meses passados
Numa manhã de Primavera
Apresentou à sua esposa
A nova filha que fizera.

Passaria por humana
Em tudo à outra era igual
Mas em verdade era máquina
Apenas feita de metal.

E ainda assim algo faltava
Que se não pôde fazer
No seu peito não havia
Um coração a bater.



Os anos foram passando
A filha real crescia
Já à outra, o pobre pai
Só peças substituía

E perguntava a sua irmã
(Que decerto o saberia)
Como era ter então
Um coração que batia.

"É duro ter um coração
Com as suas dores e penas
Por tudo se sofre em vão
Das coisas grandes às pequenas.

Preferia não o ter
Se assim queres que to diga
Não ter amor como algemas
Nem a dor como amiga..."


A outra só acreditava
Não podia dizer que não
Mas 'inda assim, em seu íntimo,
Desejava um coração.

Ora um dia belo mancebo
Chegou à casa à beira-mar
Era andarilho e precisava
De casa p'ra descansar.

Era esperto, belo e tinha
Tantas histórias para contar!
E por ele a jovem moça
Logo se foi enamorar,

A de carne, pois claro
Essa é que podia amar
Algo que a irmã de lata
Nem sabia imaginar.

Trocaram mil juras d'amor
E mil mundos por explorar
E logo então se decidiu
Que iriam os dois casar.

Foi numa manhã de Inverno
O dia estava sereno
E a brisa vinda do mar
Dava-lhe um tom ameno.

Sentada junto a uma rocha
A noiva então esperava
Com a sua irmã de lata
Que sua mão segurava.

Nisto um homem esbaforido
Apareceu a correr:
O noivo não estava em casa
Acabara de desaparecer:

Descobrir em tarda hora
Que mais queria viajar
E uma jovem mulher
Só iria atrapalhar.

A pobre noiva estremeceu
Sentiu-se como a desmaiar
E agarrou-se ao coração
Que ameaçava parar;


Já o sabia, questão de tempo
P'ra quem tem tal condição
A de ter no peito fraco
Um malfadado coração!

Com o tempo que lhe restava
Disse à irmã de metal:
"Um desejo a pedir-te
Tenho agora no final

Abre este meu peito fraco
E tira-lhe o instrumento
Máquina que eu nunca quis
Origem do meu tormento

Não te acanhes, tu o queres
Não tenhas pena, sorri:
Se o tiveres no teu peito
Viverei p'ra sempre em ti..."


A jovem 'inda hesitou
Pareceu-lhe tão errado!
Mas de um golpe arrancou
O coração quase parado

E no seu peito de metal
Abriu um espaço vazio
E onde pôs o coração
Nunca mais julgou ter frio.


Mas o que era aquilo?...

Que marés de sentimentos estranhos voavam no seu peito?
Que era aquilo que lhe deixava o espírito insatisfeito?
Eram seus agora sentimentos que o não eram
E, na alma que não sabia ter,
Um turbilhão de traças esvoaçantes
Finas como punhais
O seu corpo de meta pareciam corroer.
E a jovem rapariga-máquina
No areal à beira-mar
Sentiu que uma água nova lhe lavava o rosto
Água que sabia a mar
Água que julgou vir do mar
Mas que em verdade vinha de dentro do peito
"Poderei estar a chorar?" E estacou
Suspensa num momento de silêncio...
As vagas junto à casa traziam verdes ondas
Verdes praias, verdes olhos, verdes anos
E, soltando os cabelos ao vento
Um sorriso ténue rasgando o rosto 
E dançando feliz no areal de prata
Acariciou o coração de carne e cantando
Olhou bem alto, para os céus
Para bem longe, onde a irmã pudesse ouvir:
"Minha irmã", começou, "estavas enganada
Nada é como disseste
Hoje o mar traz-me saudades de coisas que não tenho
Não são histórias, minha irmã, são segredos
Das estrelas que contámos junto ao cais
Hoje encontro na areia a matéria de mil sonhos
E a brisa canta uma melodia que só no peito posso ouvir.
Ouço-a agora
Posso ouvi-la claramente
E antes uma vida sofrida
Por tormentos conduzida
Pela tristeza anunciada
Escarnecida, mal-amada
E pelo cru amor guiada
Que a bênção de mil séculos sem uma lágrima
                                   - uma lágrima apenas -
Que purgue a alma magoada!..."




segunda-feira, 17 de abril de 2017

O Rapaz que era uma Pedra


Pedro não era um rapaz normal
De membro algum não tinha sinais
Pedro era feito de pedra e cal
E seus olhos eram só dois minerais.

Mas Pedro ao nascer não era assim
Tinha carne e olhos, pestanas e tudo
Mas foi ao crescer que ficou por fim
Tornado em rocha, imóvel e mudo.

Os pais, aflitos, tudo investigaram
Pela cura estiveram atentos, à espera
De médicos, peritos, tudo procuraram
E só um soube descobrir o que era:




E que se o tratassem com brusquidão
Ou se por acaso alguém o magoava
Em vez de se transformar o coração
Era o corpo que em pedra se tornava.

Foi lentamente que tudo começou
Osso por osso, até nada restar
E no fim só a pedra Pedro ficou
Com coração puro e amor p'ra dar.

Os pais discutiram,choraram, pensaram,
Suportaram o Pedro até não poder mais
E tempos depois a sentença decretaram
E deixaram a pedra com outras iguais:




Ele era-lhes um peso... era literalmente...
E nunca poderia falar ou sequer abraçar
E nisto esqueceram irresponsavelmente
Que até em silêncio é possível amar.

Passam dias, passam meses, passam anos
E o Pedro conheceu Sol, a chuva e o vento
E em noites de estrelas enchia-se de enganos
E sonhava uma vida com calor e alento.

Até que um dia (quanto tempo já iria?)
Alguém levantou o Pedro do chão
Pois naquele ermo se construiria
Uma casa habitável p'ra dias de Verão.




O Pedro é então lavado e pousado
Junto com pedras que ali estavam
No fim foi todo polido, cimentado:
Seria parede para os que ali habitavam.

Veio toda a família, pai mãe e irmão
E a filha engraçada que por lá já entrara
E dentro do Pedro alegrou-se o coração:
Tinha a família que sempre desejara.







E dia após dia, de coração em chama
Abençoa os seus membros, todos um por um
Sabe os seus segredos, murmurados na cama
Quando mais ninguém parece estar a ouvir
E mesmo não podendo falar ou sorrir
Fá-lo em seus sonhos como irmão que os ama
E ainda hoje, em noites de enganos
Quando as estrelas brilham mais que o Sol
Que é algo só possível em sonhos, magia,
Apesar de se saber pedra, cimento e aço
Ainda pede o seu maior desejo
                                                 - Um abraço,
Pois ninguém abraça uma parede fria...


quinta-feira, 13 de abril de 2017

O Pequeno Vlad

Vladimir era pequeno e sisudo
Vladimir tinha sete anos de idade
Vladimir não era nome de miúdo
Pelo que então lhe chamavam Vlad.

Vladimir tinha dois pais extremosos
Que o amavam com amor profundo
Vladimir tinha bonecos mimosos
Mas não sorria com nada do mundo.

Vladimir, Vlad, como lhe chamavam
Tinha em mente montanhas de ideias
Só não tinha alma como todos teimavam
E só sorria com as coisas feias.

Escaldar o gato era o seu prazer
Estragar colmeias era o seu delírio
Lhe aprazia tudo o que era sofrer
E aos bonecos prestava martírio.

Em dias de chuva, de neve ou geada
Vlad não podia estragar as colmeias
Tinha que ficar em porta fechada
E deitava em bonecos as suas ideias.

Entrava em silêncio; seus passos mudos
Eram as sombras do quarto que tinha
Enquanto bonecos, de corpos desnudos
Esperavam apenas aquilo que vinha.

Peluches, bonecas, todos eram iguais
Quando chegava a hora da tortura
Lágrimas caem de formas animais
E a pele das bonecas perdia a alvura.

Vlad odiava-os a todos um por um
Todos felizes assim que os viu
E tirou-lhes o riso reduzido a nenhum:
Não podiam rir se ele mesmo não riu.

Num dia mais negro e escuro que o breu
Vlad subiu vivamente as escadas
A porta gritou, o chão estremeceu
E as coisas olharam mortas, assustadas.

Vlad aproxima-se; um urso de peluche
Foi agarrado por uma mão forte
Bonecas, palhaços e até um fantoche
Foram levados para a mesa da morte.

Papéis e o resto são deitados ao chão
E as vítimas medrosas foram estendidas
Pegou numa faca, ergueu-a com a mão
E tirou-lhes braços, as pernas, as vidas.

Salta uma perna, rola uma cabeça
Bonecas perdem seus lindos cabelos
Não há brinquedo que ali não pereça
E, no final, brinquedos... nem vê-los...!


Vlad cessou, estendeu o projecto
Arranca um braço a um urso desfeito
Olha o braço, o urso, depois o tecto
Pretende criar o brinquedo perfeito.

Vlad pousa a faca, pega agulha e linha
E por entre desordem escolhe bocados
Partes diferentes que cada um tinha
São pela agulha toscamente ligados.



Já não é Vlad, é alma vil e seca
Já não é boneco, é monstro que sai
E de um dos olhos cosidos de boneca
Uma lágrima de pano, escorrendo, cai.

Terminada a obra, olha-a com vileza
Olha-a fixo o maldoso Vladimir
E no meio do rosto marcado por dureza
Pela primeira vez se lhe viu um sorrir.

Estende a cadeira, senta nela a criatura
Que nem sei que nome lhe hei-de dar
E olhando-o por entre uma luz escura
Vlad fixa-o e começa a falar:

"Sou teu criador, faz algo que eu queira
Eu mando em ti, eu fiz-te perfeito
Criou-se um boneco pela vez primeira
E mostra o que vales, que a mim estás sujeito."

A chuva adensa-se, chega a trovoada
O mundo lá fora parece acabar
Mas o brinquedo, de alma magoada,
Já não consegue mexer-se ou falar.

Vlad enfurece-se, espeta-lhe um ferro
Espeta-lhe um ferro no coração de pano
Mas um trovão cai: Vlad solta um berro
Pois fora a ele feito o maior dano...

A trovoada passa, a chuva acalma
Mas no quarto tudo é confusão
E Vlad e o boneco, atingidos pelo raio
Encontram-se ambos estendidos no chão.




"Vladimir, vem, já chegou o bom tempo
Sai desse quarto e vamos passear
Apenas está frio e um pouco de vento
Mas não é algo que impeça brincar."

É a mãe que chama, Vlad abre um olho
Seguramente fora um pesadelo
Mas vê-se o medo 'inda em seu sobrolho
Que não conhecia, nunca soube vê-lo.

Mas então não se consegue levantar!
Braços, as pernas, nenhum dele se move
Quer ver que se passa, não se pode virar
E assombro no peito perturba e demove.



A mãe entra: "Vladimir, que é de ti feito?"
Vlad quer gritar, mas a voz não lhe sai
E é quando nota um ferro em seu peito
E que é de pano a lágrima que cai.

Um jovem passa; é dele o rosto que tem
Era ele mesmo, mas sabia não o ser
E levanta-se e dá a mão à sua mãe
E Vlad chora, não se pode mexer.




Mas não é que é seu o corpo que ele usa!
Ele, no chão, ele é o verdadeiro!
Aquele seu corpo é uma falha confusa
E as almas trocadas por um trovão certeiro!

O falso Vlad olha e fala com mansidão:
"Mãe, um dos meus brinquedos está estragado
É aquele além, estendido no chão
De ferro no peito e corpo parado."

"Meu filho-o, deixa, dou-te outro brinquedo
Chama teu pai para que o deite fora
A trovoada passou, já não temos medo
Vou contigo à loja sem mais demora."

O coração de Vlad partiu-se sem paz
E desvaneceu-se a alma que não sabia ter
E foi então que o brinquedo tornado rapaz
Saiu pela porta sem sequer o ver.


E esta é a história do Vladimir sisudo
Que por sete anos acumulou maldade
Que de rapaz feito de carne e ossudo
Passou a boneco sem voz nem vontade
Um ferro perfura-lhe agora o coração
Aquele coração que nunca soube ter
E antes sequer que pudesse ver
As brasas da lareira para o qual foi levado
Que o tornariam numa cinza perdida
E sentindo de longe o calor que emana
Verteu ainda uma lágrima humana e essa foi
A única coisa humana que soube fazer em vida.


domingo, 9 de abril de 2017

O Cavaleiro sem Cabeça

Quando a noite já começa
E é chegada a neve fria
Uma sombra vai depressa
E contam que sombra essa
É da sombra que corria
Do cavaleiro sem cabeça.

Tem por elmo o gelo frio
Onde cabeça devia estar
É de um traço branco e esguio
O seu cavalo sombrio
E a espada feita de luar
É brandida ao desafio.




Teodora nada conta
Teodora nada espera
Teodora, moça tonta
Teodora, que afronta
Creres que o cavaleiro era
A sombra que o Sol desponta!

Tua mãe, teu bem primeiro
Tua mãe, a sós contigo
Contou-te do cavaleiro
De semblante derradeiro
Contou-te um conto antigo
E tu crê-lo verdadeiro!

E tu crê-lo ser verdade
E tu crê-lo vir um dia
Viver a realidade
Não é tua faculdade
Só vives a fantasia
Tão fora de tua idade...



Teodora, tu és sonho
És história em papel branco
E tempos há que eu suponho
Ao olhar teu véu risonho
E notar o teu ar franco
Algo ao qual eu só me oponho...

Oponho por ser do mundo
Oponho por ser real
Por ser algo infecundo
Enganoso, oriundo
De tua mente irreal
Sem que nela ache fundo...

Menina, que és criança
Menina, pequena em alma
Tua vida é a esperança
Pela bem-aventurança
Que bebeste um dia em calma
Sem cuidar do que se alcança...



Teodora sobe escadas
Da sua mansão fria
Enquanto sonha com fadas
E coisas imaginadas
Que sua mãe não queria
Que fossem tão sonhadas...

Abre a porta; o quarto frio
(De lençóis esvoaantes
Como as águas de um rio)
Tem algo mais de bravio
Do que já tivera antes
Depois de anos de vazio...

Abre a janela Teodora
E contempla a noite escura
Olha a Lua que adora
Lua que incessante chora
Sete estrelas de amargura
De receio pela aurora...



A noite passa sem ruído
Corujas voam e piam
Na cadeira, um vestido
De um branco dolorido
Daqueles que se faziam
Num tempo que é já perdido...

Um relincho a céu aberto
Acorda a Teodora
Que tem sempre sono incerto
Por seu espírito desperto
E ouve um som de espora
Vindo dos céus encoberto...

Pedras rolam; com a mão
Grande e coberta de metal
Trepa alguém com brusquidão
Teodora vê que, então
O cavaleiro, afinal,
Não vem de imaginação...


É tenaz, esta menina
Não tem medo, é teimosa
E toca a espada fina
Do cavaleiro que a fascina
E sua cabeça faltosa
Ela cria e imagina.

Sente-lo no teu fraco peito?
Teu coração a bater?
É amor ao sonho feito
É por um sentir perfeito
Pelo cavaleiro ver
Subir ao teu parapeito...



Subiu e provou verdade
Subiu e sempre é real
Teodora, tenra idade
Sobe à garupa jade
Do cavaleiro espectral
Por sua felicidade...

O cavalo já não corre
Abre as asas, ganha voo
E afasta-se da torre,
Do quarto onde se morre
Sem hipótese de revoo
Todo sonho que discorre...

E voa
Enevoa
A própria verdade
E cede
Concede
Toda a liberdade
São medos
São ledos
Que ocultam a Lua
São aves
São chaves
Da noite que é sua
Que abrem
Que fazem
Sentir transparente
O vento
O alento
De sentir-se gente
De sonhos
Mais sonhos
De monstros medonhos
De espadas cortantes
De voos rasantes
Ah, não ser como dantes!
Engolir o mundo
Saudoso
Profundo
Num poço do peito
Perdido
Desfeito
Em sonhos que voam
Povoam
A alma inquieta
E sobem
E sobem
E crescem
Florescem
E abrem
E abrem
E forçam
E abraçam
Todo o infinito
Que é tão mais perto
E rápido
Tão certo
E, no céu aberto
Suspiro enfim
Sou livre! Por fim!
Na alma que passa, que passa, que passa, que passa...

Tomba um corpo em fraco estado
Teodora adormecera
E o cavaleiro decepado
Ordena ao cavalo alado
Que volte p'ra onde viera
A volta tinha acabado.

A noite já ia finda
E o cavaleiro, com cuidado
Passa a mão na fronte linda
De Teodora; a menina
De rosto feliz e cansado
Já deitada dorme ainda...

Dorme, dorme, Teodora
Amanhã será um sonho
Esquece a espada, a espora
E o que a razão ignora
E lembra o céu medonho
Como quem nunca lá fora...


Uma sombra rasga o ar
Fecha rápida a janela
Encerrando a donzela
Em seu leito, a sonhar
Com a verdade que é dela
Ser sonho ou realidade
É pergunta, desatino
É tesouro fraco, fino
Pois que toda a verdade
É senhora do destino
E, quando a noite já começa
E é chegada a neve fria
A sombra ainda rasga o ar
Rasga o ar e vai depressa
Em seu cavalo sombrio
Por névoa, gelo frio
E se algures a branca Lua
Destacar, já findo o dia
Uma espada longa e fria
Saibam pois que sombra essa
Que os nossos sonhos leva
É a sombra que regressa
Submersa em noite e treva
Do cavaleiro sem cabeça.


quarta-feira, 5 de abril de 2017

Dama de Espadas

Contam os contos de fadas
Que na serra (quem diria!)
No reino das Cem Escadas
Em terras abandonadas
Perdida na noite fria
Viveu a Dama de Espadas.

A Lua é sua companheira
Um gato preto dorme ao lado
E dos sonhos prisioneira
Deitada a vida inteira
Tem por cobertor um manto
Que lhe cai pela esteira.

"Minha dama, senhora minha"
Chama o gato com doçura
"Como se chama a luzinha
Que aquela estrela tinha?"
"É a vontade, criatura,
Que vive na estrela sozinha."


"Minha senhora, nesta rua"
Torna o gato, impetuoso,
"Uma sombra se insinua
Que quer a alma que é tua."
"É algo mau, monstruoso,
É a mentira nua e crua."

"Minha rainha, que a sorte o quis,
El-Rei perguntou por vós
Perguntou por que fugis
Deixou um escrito; que vos diz?"
"Dobrada, envolta em nós,
Deixou-me uma flor-de-lis;

Gatos não são bons escritores
Mas a servir não são maus
Vai-me ao Jardim das Dores
Colhe-me uma carta em flores
E manda-a p'lo Duque de Paus
De volta aos seus senhores."




Passa a noite, chega o dia
E a dama escura e preta
Que em nada crê na magia
Ousa seguir a fantasia
Tira um vestido da gaveta
Sem saber o que viria...

Abre-se a terra num repente
Partem-se espelhos em volta
Tudo é feito em sua mente
Mas porque a dama o consente
Deixa o sonho que se solta
E que vive realmente.

Estava tudo como lembrava:
Giram relógios ao contrário
O ribeiro azul cantava
E num eco que rasgava
Um rochedo solitário
O Valete de Paus chamava.


Chamava, ela assim pensa
Como poderia saber?
Pela sua dor intensa
E, lá na floresta densa
Desataram a correr
Desbravando a mata extensa.

Quanta doçura, quanta saudade
Quantos tempos se passaram!
Meses, anos... a eternidade...
Tanto dia claro, tempestade
Até que os tempos recuaram
Por longínqua lealdade...

Cessam ventos imortais
Cessam vozes murmuradas
Trocam notas musicais
Sonhos que agora são iguais
E trocam palavras dadas
Por um códex de sinais...

Num acto de triste ilusão
Ambos se encontram deitados
Sem pensar com a razão
Como que em adoração
Um do outro, descompassados,
Ouvem bater o coração.

É noite alta, chega o sono
A respiração já é dormente
E no peito, ao abandono,
No seu ritmo dolente
Seguem o coração quente
Do qual não conhecem dono...

Adormece a dama escura
Recordam-se palavras loucas
E sugada por candura
Do denso negro fez alvura
Tornou-se Dama de Copas
E de espadas fez ternura...

Passam tempos... não sei quantos
Os relógios já pararam
E em sua torre de encantos
A dama se encontra deitada
Perdida em seus quebrantos
As suas vestes se tornaram
Em negro pó sem magia
E na serra (quem diria)
Em terras abandonadas
Perdida na noite fria
No reino das Cem Escadas
Com um coração nas mãos
Que julga não ser o seu
Porque de amor se perdeu
Já não é Dama de Espadas.


sábado, 1 de abril de 2017

Era uma vez


Era uma vez, há muito tempo atrás
Num tempo ou contratempo já perdido
Uma torre sem janelas ou escadas
Um caminho que se corre sem sentido
Uma luz perdida no céu nocturno
Uma terra sem plantas e sem cor
Uma voz que ecoa nas montanhas
Uma fonte onde a saudade bebe a dor.

Era uma vez, há muito tempo atrás
Sob um Sol cuja luz é já sem vida
Um campo em cuja terra houve flores
Que enterram a ausência já perdida
Há dois cães desbravando os caminhos
Encobertos por mantos de sal e fel
Há duas luas já sem boca e sem olhos
E cujas vozes soam a leite e mel.

Há dois sapatos rotos e já gastos
Fartos de engolir o pó da terra
Há dois vestidos escondidos na gaveta
Que são as vestes da paz e irmã guerra
Há dois corpos que se encostam num sussurro
Perdidos na pedra dura da calçada
Há duas lágrimas pela noite fugitivas
Recolhidas pela boca abandonada.


Era uma vez, há muito tempo atrás,
Dois sonhos que já partiram e voltaram
Há duas pedras encobertas pelo vento
Que de rocha para água se tornaram
Há duas mãos revestidas de veludo
Enlaçadas pela noite que perece
É a dama coberta de noite e estrelas
Abraçada ao valete que a adormece.

Era uma vez, há muito tempo atrás,
Duas sombras na penumbra que se esfuma
E que findo o Sol, chegada a Lua,
Eu as vi e julguei serem só uma
Há dois copos de licor sobre uma mesa
Que Esperança e Ansiedade abandonaram
Ao ver, cobertos pelo quente Estio,
Dois lábios que, por amor, pecaram.

Há quatro valsas de saias brancas que
Por estrelas de quatro cores são veladas
Há quatro palavras surdas não ditas
Enterradas na poeira das estradas
Há quatro braços no céu perdidos
Rasgando os véus de luz e treva
Dois que levam corpos de Lua e Sol
Outros dois envolvendo quem os leva.


"Era uma vez" é sonho azul, errante
É ser-se erróneo na vontade, triste fado
É a areia de tempos já perdidos
É água fria e doce, vidro pintado
É pleonasmo de esperar pela esperança
Que o céu azul prometeu um dia
É enterrarmos nossa alma fria e crua
Num coração quente que batia;

É prometermos, vãos, a nossa vida
À vida pela qual, em vão, morremos
É história infinda, feita, forçada
Que escolhemos como nossa porque qu'remos
É criamos nossas folhas e raízes
De árvores altas, mil, fazer altares
É afogarmos nosso sopro noutro sopro
É na terra amargurada vencer mares.

Nesses tempos que se lembram e não voltam
Dos quais não há voz ou céu que conte
Eu recolho as estrelas que se soltam
E delas faço grinaldas a jeito
De cobrir, à meia-noite, a tua fronte
E perdendo os meus sonhos no horizonte
Lembrando-me, dormente, no teu peito
Nas tramas sem lei que a vida faz
Escuto o teu coração que eu suponho
Ainda contar ao meu, como num sonho
Era uma vez... há muito tempo atrás...