quarta-feira, 5 de abril de 2017

Dama de Espadas

Contam os contos de fadas
Que na serra (quem diria!)
No reino das Cem Escadas
Em terras abandonadas
Perdida na noite fria
Viveu a Dama de Espadas.

A Lua é sua companheira
Um gato preto dorme ao lado
E dos sonhos prisioneira
Deitada a vida inteira
Tem por cobertor um manto
Que lhe cai pela esteira.

"Minha dama, senhora minha"
Chama o gato com doçura
"Como se chama a luzinha
Que aquela estrela tinha?"
"É a vontade, criatura,
Que vive na estrela sozinha."


"Minha senhora, nesta rua"
Torna o gato, impetuoso,
"Uma sombra se insinua
Que quer a alma que é tua."
"É algo mau, monstruoso,
É a mentira nua e crua."

"Minha rainha, que a sorte o quis,
El-Rei perguntou por vós
Perguntou por que fugis
Deixou um escrito; que vos diz?"
"Dobrada, envolta em nós,
Deixou-me uma flor-de-lis;

Gatos não são bons escritores
Mas a servir não são maus
Vai-me ao Jardim das Dores
Colhe-me uma carta em flores
E manda-a p'lo Duque de Paus
De volta aos seus senhores."




Passa a noite, chega o dia
E a dama escura e preta
Que em nada crê na magia
Ousa seguir a fantasia
Tira um vestido da gaveta
Sem saber o que viria...

Abre-se a terra num repente
Partem-se espelhos em volta
Tudo é feito em sua mente
Mas porque a dama o consente
Deixa o sonho que se solta
E que vive realmente.

Estava tudo como lembrava:
Giram relógios ao contrário
O ribeiro azul cantava
E num eco que rasgava
Um rochedo solitário
O Valete de Paus chamava.


Chamava, ela assim pensa
Como poderia saber?
Pela sua dor intensa
E, lá na floresta densa
Desataram a correr
Desbravando a mata extensa.

Quanta doçura, quanta saudade
Quantos tempos se passaram!
Meses, anos... a eternidade...
Tanto dia claro, tempestade
Até que os tempos recuaram
Por longínqua lealdade...

Cessam ventos imortais
Cessam vozes murmuradas
Trocam notas musicais
Sonhos que agora são iguais
E trocam palavras dadas
Por um códex de sinais...

Num acto de triste ilusão
Ambos se encontram deitados
Sem pensar com a razão
Como que em adoração
Um do outro, descompassados,
Ouvem bater o coração.

É noite alta, chega o sono
A respiração já é dormente
E no peito, ao abandono,
No seu ritmo dolente
Seguem o coração quente
Do qual não conhecem dono...

Adormece a dama escura
Recordam-se palavras loucas
E sugada por candura
Do denso negro fez alvura
Tornou-se Dama de Copas
E de espadas fez ternura...

Passam tempos... não sei quantos
Os relógios já pararam
E em sua torre de encantos
A dama se encontra deitada
Perdida em seus quebrantos
As suas vestes se tornaram
Em negro pó sem magia
E na serra (quem diria)
Em terras abandonadas
Perdida na noite fria
No reino das Cem Escadas
Com um coração nas mãos
Que julga não ser o seu
Porque de amor se perdeu
Já não é Dama de Espadas.


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