sexta-feira, 21 de abril de 2017

A Rapariga de Metal


Numa casa à beira-mar
Numa praia prateada
Viveu um grande inventor
Com a sua esposa amada.

Eram felizes (como não?)
Amavam-se co'amor profundo
E sabiam vencer juntos
As maiores penas do mundo.

Contudo algo faltava
Não se sabia o que seria
Mas a esposa disse "Um filho
Nos trará mais alegria!"

"Uma menina!" concordaram
Esse desejo assim ficou
E nem um ano passara
E o dia feliz chegou.



O inventor, tão inquieto,
Bem esperava de olhos baços
Pela menina adorada
Que iria ter nos braços.

Mas a Sorte e o Destino
Algo tinham planeado
E se uma moça nascera
Outra cumpriu triste fado.

Eram duas, lho disseram
Gémeas, mas ninguém previra
E se uma nasceu saudável
Outra mais frágil morrera.

E o inventor derrotado
Olhou o céu com rosto langue:
Tudo pudera inventar
Menos p'ra salvar seu sangue!



Pensou então remediar
E por fim o coração
Lhe disse aquela que era
A possível solução

E alguns meses passados
Numa manhã de Primavera
Apresentou à sua esposa
A nova filha que fizera.

Passaria por humana
Em tudo à outra era igual
Mas em verdade era máquina
Apenas feita de metal.

E ainda assim algo faltava
Que se não pôde fazer
No seu peito não havia
Um coração a bater.



Os anos foram passando
A filha real crescia
Já à outra, o pobre pai
Só peças substituía

E perguntava a sua irmã
(Que decerto o saberia)
Como era ter então
Um coração que batia.

"É duro ter um coração
Com as suas dores e penas
Por tudo se sofre em vão
Das coisas grandes às pequenas.

Preferia não o ter
Se assim queres que to diga
Não ter amor como algemas
Nem a dor como amiga..."


A outra só acreditava
Não podia dizer que não
Mas 'inda assim, em seu íntimo,
Desejava um coração.

Ora um dia belo mancebo
Chegou à casa à beira-mar
Era andarilho e precisava
De casa p'ra descansar.

Era esperto, belo e tinha
Tantas histórias para contar!
E por ele a jovem moça
Logo se foi enamorar,

A de carne, pois claro
Essa é que podia amar
Algo que a irmã de lata
Nem sabia imaginar.

Trocaram mil juras d'amor
E mil mundos por explorar
E logo então se decidiu
Que iriam os dois casar.

Foi numa manhã de Inverno
O dia estava sereno
E a brisa vinda do mar
Dava-lhe um tom ameno.

Sentada junto a uma rocha
A noiva então esperava
Com a sua irmã de lata
Que sua mão segurava.

Nisto um homem esbaforido
Apareceu a correr:
O noivo não estava em casa
Acabara de desaparecer:

Descobrir em tarda hora
Que mais queria viajar
E uma jovem mulher
Só iria atrapalhar.

A pobre noiva estremeceu
Sentiu-se como a desmaiar
E agarrou-se ao coração
Que ameaçava parar;


Já o sabia, questão de tempo
P'ra quem tem tal condição
A de ter no peito fraco
Um malfadado coração!

Com o tempo que lhe restava
Disse à irmã de metal:
"Um desejo a pedir-te
Tenho agora no final

Abre este meu peito fraco
E tira-lhe o instrumento
Máquina que eu nunca quis
Origem do meu tormento

Não te acanhes, tu o queres
Não tenhas pena, sorri:
Se o tiveres no teu peito
Viverei p'ra sempre em ti..."


A jovem 'inda hesitou
Pareceu-lhe tão errado!
Mas de um golpe arrancou
O coração quase parado

E no seu peito de metal
Abriu um espaço vazio
E onde pôs o coração
Nunca mais julgou ter frio.


Mas o que era aquilo?...

Que marés de sentimentos estranhos voavam no seu peito?
Que era aquilo que lhe deixava o espírito insatisfeito?
Eram seus agora sentimentos que o não eram
E, na alma que não sabia ter,
Um turbilhão de traças esvoaçantes
Finas como punhais
O seu corpo de meta pareciam corroer.
E a jovem rapariga-máquina
No areal à beira-mar
Sentiu que uma água nova lhe lavava o rosto
Água que sabia a mar
Água que julgou vir do mar
Mas que em verdade vinha de dentro do peito
"Poderei estar a chorar?" E estacou
Suspensa num momento de silêncio...
As vagas junto à casa traziam verdes ondas
Verdes praias, verdes olhos, verdes anos
E, soltando os cabelos ao vento
Um sorriso ténue rasgando o rosto 
E dançando feliz no areal de prata
Acariciou o coração de carne e cantando
Olhou bem alto, para os céus
Para bem longe, onde a irmã pudesse ouvir:
"Minha irmã", começou, "estavas enganada
Nada é como disseste
Hoje o mar traz-me saudades de coisas que não tenho
Não são histórias, minha irmã, são segredos
Das estrelas que contámos junto ao cais
Hoje encontro na areia a matéria de mil sonhos
E a brisa canta uma melodia que só no peito posso ouvir.
Ouço-a agora
Posso ouvi-la claramente
E antes uma vida sofrida
Por tormentos conduzida
Pela tristeza anunciada
Escarnecida, mal-amada
E pelo cru amor guiada
Que a bênção de mil séculos sem uma lágrima
                                   - uma lágrima apenas -
Que purgue a alma magoada!..."




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