sábado, 1 de abril de 2017

Era uma vez


Era uma vez, há muito tempo atrás
Num tempo ou contratempo já perdido
Uma torre sem janelas ou escadas
Um caminho que se corre sem sentido
Uma luz perdida no céu nocturno
Uma terra sem plantas e sem cor
Uma voz que ecoa nas montanhas
Uma fonte onde a saudade bebe a dor.

Era uma vez, há muito tempo atrás
Sob um Sol cuja luz é já sem vida
Um campo em cuja terra houve flores
Que enterram a ausência já perdida
Há dois cães desbravando os caminhos
Encobertos por mantos de sal e fel
Há duas luas já sem boca e sem olhos
E cujas vozes soam a leite e mel.

Há dois sapatos rotos e já gastos
Fartos de engolir o pó da terra
Há dois vestidos escondidos na gaveta
Que são as vestes da paz e irmã guerra
Há dois corpos que se encostam num sussurro
Perdidos na pedra dura da calçada
Há duas lágrimas pela noite fugitivas
Recolhidas pela boca abandonada.


Era uma vez, há muito tempo atrás,
Dois sonhos que já partiram e voltaram
Há duas pedras encobertas pelo vento
Que de rocha para água se tornaram
Há duas mãos revestidas de veludo
Enlaçadas pela noite que perece
É a dama coberta de noite e estrelas
Abraçada ao valete que a adormece.

Era uma vez, há muito tempo atrás,
Duas sombras na penumbra que se esfuma
E que findo o Sol, chegada a Lua,
Eu as vi e julguei serem só uma
Há dois copos de licor sobre uma mesa
Que Esperança e Ansiedade abandonaram
Ao ver, cobertos pelo quente Estio,
Dois lábios que, por amor, pecaram.

Há quatro valsas de saias brancas que
Por estrelas de quatro cores são veladas
Há quatro palavras surdas não ditas
Enterradas na poeira das estradas
Há quatro braços no céu perdidos
Rasgando os véus de luz e treva
Dois que levam corpos de Lua e Sol
Outros dois envolvendo quem os leva.


"Era uma vez" é sonho azul, errante
É ser-se erróneo na vontade, triste fado
É a areia de tempos já perdidos
É água fria e doce, vidro pintado
É pleonasmo de esperar pela esperança
Que o céu azul prometeu um dia
É enterrarmos nossa alma fria e crua
Num coração quente que batia;

É prometermos, vãos, a nossa vida
À vida pela qual, em vão, morremos
É história infinda, feita, forçada
Que escolhemos como nossa porque qu'remos
É criamos nossas folhas e raízes
De árvores altas, mil, fazer altares
É afogarmos nosso sopro noutro sopro
É na terra amargurada vencer mares.

Nesses tempos que se lembram e não voltam
Dos quais não há voz ou céu que conte
Eu recolho as estrelas que se soltam
E delas faço grinaldas a jeito
De cobrir, à meia-noite, a tua fronte
E perdendo os meus sonhos no horizonte
Lembrando-me, dormente, no teu peito
Nas tramas sem lei que a vida faz
Escuto o teu coração que eu suponho
Ainda contar ao meu, como num sonho
Era uma vez... há muito tempo atrás...







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