quarta-feira, 9 de agosto de 2017

Memórias



É uma tarde de Inverno
Redundantemente uma tarde de mim
E, abrigado debaixo dos pinheiros nevados,
Descalço, que o frio nunca me incomodou,
As mãos já insensíveis ao calor do corpo
E a alma mais insensível ao do coração
Vou contando flocos de neve
Contando lentos flocos de neve
Que se afogam no mar de gelo…

Ao longe vejo a casa, aquela que em teoria é minha,
Deixou de o ser quando a minha avó partiu
O meu grave pai deve estar junto à lareira
A minha adorada irmã deve estar a chorar
E a minha mãe, consternada, chama-me;
Só eu é que estou debaixo dos pinheiros nevados
A cabeça dormente, o coração quase parado
E desejo cá ficar eternamente…





Mas eu estou em casa! A neve é a minha casa
O Inverno mais o frio que ele traz
A minha mãe adora o Verão e resmunga no Inverno
É dizer, resmunga comigo então também,
Porque eu não sei ser mais senão Inverno;
Calor nenhum do Verão me dará o conforto
Que o ópio que uma noite invernosa me traz
E é nestas alturas que eu me enterro na neve
Que eu me enterro até ao pescoço na neve
Esperando ser uma estátua de gelo
E ser finalmente uma vez mais parecido comigo…









Ouço ao longe, ergo a cabeça
Espreguiço um pouco a mente vazia
A mente cheia de branco e de nada
Branco de neve e nada como eu
E exclamo para mim que é desta que não volto
Que vou ficar aqui no meu reino de gelo
E dele fazer as minhas maravilhas;
A minha pele branca já é quase cinzenta
Cinzenta do frio e cinzenta dos pinheiros
Que sussurram por entre a folhagem…





Não vou!
Já disse que não vou!
Deixai-me ficar por entre os pinheiros cinzentos
E que eu me confunda com o cinzento dos pinheiros
Se às pessoas sou vil e mesquinho
Se lhes fiz conhecer a amargura de carácter (dizem elas)
Se lhes dou mais mal que bem
Deixai-me ficar entre os pinheiros cinzentos
Entre os nobres e graves pinheiros cinzentos
Pois se nunca a uma árvore ou a uma planta fiz o mal
Não se incomodarão se viver entre eles…

Deixai-me gelar!
Deixai-me fundir com a neve branca e ser uma estátua de gelo
Sempre sonhei poder ser uma estátua gelada
E adormecer por entre a neve e os pinheiros
E na chegada do quente Estio
Daria de beber às jovens flores.
Sou o Inverno e ninguém gosta do Inverno
E por isso desejo ser uma estátua de gelo
E sonho o dia em que alguém mais afoito
Pudesse chegar e dizer “este menino tem frio”
E em me abraçando me fizesse derreter e morrer a mais bela das mortes…


Oferecem-me doces…
Ah, os doces! A primeira moeda que conheci!
Que nostalgia, que lonjura por esses doces
Aqueles que me faziam esquecer que me troquei por doces
E que eram a resposta para todas as quezílias;
Manda-se e paga-se com doces
E assim se vão ensinando as gerações…
Mas olha, guarda os teus doces
Que eu preferia mil vezes mais um abraço que derretesse o gelo frio
Que a ainda mais fria política dos doces…

(Esta parte é devaneio, contudo;
Nunca lhes dei tal resposta nem ela o soube
E mesmo sabendo talvez não fizesse diferença nenhuma
Pois o mundo - o nosso - não pode funcionar sem moeda:
Mentir-me-ia se me conquistasse com um abraço e não doces…

… Ah… os doces…
Não foi por tantos doces que tive que me tornei menos amargo
Talvez não seja assim que se adoçam pessoas
Não sou uma peça de culinária…)


 


Mas sabem, ainda hoje me oferecem doces
Talvez não os mesmos, mas de outras maneiras
Ocultos num beijo, numa frase, num sorriso
Que na verdade mais não são que doces
Mentirosos doces e moedas para câmbio
E eu, que para além de caro ainda sou pobre
E não tenho moedas de natureza nenhuma
Por não saber mentir também nada compro
E ando por aí, de mãos nos bolsos, a fazer contas
Quanto vali hoje, de quanto perdi em não me ter vendido
De quanto será o valor no dia em que me vender
E até de quantas vezes me venderei
Que aguentar comigo, sei-o bem, não é tarefa de uma vida
E com isto no meu peito vai nevando
E sentado vou sonhado debaixo dos pinheiros cinzentos…





(Nos meus sonhos há uma grande casa branca
Uma solitária mas feliz casa branca
E, na entrada, de braços estendidos em flor,
Uma figura me convida e sorri
E eu, criança perdida nos pinheiros cinzentos,
Ergo-me e choro flocos de neve
E, por um momento, aceito os doces
Aceito o sorriso, aceito o abraço
E suspiro: até o Inverno gosta de se sentar à lareira de vez em quando
E talvez por isso seja tão frio, para que se lhe acendam várias lareiras…)

No final do seu tempo o Inverno diz:

- Vou morrer. Acordem-me quando chegar a Primavera…


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