segunda-feira, 7 de agosto de 2017

O Cemitério


No tempo em que eu era ainda jovem menino
E o homem grande dormia dentro de um corpo pequeno
Com minha avó, gentil senhora,
De braço dado, coração uno,
Subia a longa escadaria de pedra e, contente,
Ia visitar o cemitério…

Visitava-o, digo bem
Visitava-o como se visita um lugar sem ter quem ver
Que a minha avó, doce senhora,
Só lá entrava por meu avô
Por meu grave e não saudoso avô
Pois que não se pode visitar ou suspirar quem não se conhece.

Passava o portão, tudo na mesma
Que a morte não conhece nem tem tempo
E em o tendo não é seguramente o nosso
Todos dormimos para acordar um dia
Isto dizia a minha avó
Mas se a morte tinha o tempo de uma noite
E é de noite que os espíritos visitam as ruas
Não querem ver que andamos enganados
E o Sol não é mais que a Lua dos que morrem!...


No tempo em que eu era ainda um jovem menino
E queria acordar o homem grande que dormia
Sonhava de dia e acordava de noite
Meu pai ralhava, minha mãe suspirava
E minha avó perguntava por que andava ao contrário
- Não ando ao contrário, ando direito
Que há mais mortos que vivos no mundo
E se eles são mais e a maioria sai de noite
Devo seguir a maioria, que é quem deve ter razão…

A minha avó dobra-se: arranja as flores
Arranja as flores que morrem com o dia que passa
Sabem que vão morrer, essas flores
E tal como aqueles a quem se destinam
São enterradas também nas urnas dos cemitérios
Nas urnas frias e pálidas dos cemitérios
Naquela cama branca como um lençol…

(Sempre achei haver destinos melhores para flores mortas
Haver urnas melhores para flores mortas
Que não fossem as campas que não são as suas
Mas são mais felizes que os mortos que nelas dormem
Pois esses não tiveram o Sol que lhes desse o último beijo desta vida
Tão tapados estão pelo mármore dos cemitérios…)


No tempo em que eu era ainda um jovem menino
Cuja inocência secava como secam as flores em cemitérios
Cria haver cemitérios mais simpáticos que outros.
Hoje ainda visito cemitérios
E agora sei que os seus inquilinos são todos iguais:
Pobres figuras paradas, olham-nos por detrás das grades dos sepulcros
E todos usam as mesmas estátuas para lhes dar um rosto que já não têm.
Hoje já não sou um jovem menino
E aceitei ser um homem grande, que é dizer
Ser-se uma urna andante de um morto que respira
A urna andante do menino que eu já fui
E que me aparece em sonhos num busto de cera como o dos cemitérios…

Lembro-me daquelas tardes lentas e brilhantes
Em que, perdido no silêncio de minha avó,
Admirava os magistrais sepulcros que ornavam o cemitério
“Um dia quero viver numa casa assim” pensava eu
Hoje sei que não é necessário uma casa assim nem estar-se morto
E que também em casas de vivos vivem tantas vezes mortos!...

(A vida ensina-nos a morrer, alguém me dissera um dia
Talvez por isso tantos morram antes de morrer
Ensaiando com afinco antes do concerto final
Infelizmente nunca fui bom concertista…)


Tomam-me pela mão: é minha avó que se alevanta
Que se alevanta com a dignidade com que sempre foi a minha avó
A dignidade pálida e séria como uma estátua das que eu via em cemitérios
Eu ergo a cabeça, levanto-me por meu pé
E retorno pelo mesmo caminho de pedra polida
Deixo atrás de mim os bustos, as camas frias
Deixo atrás de mim as máscaras que sorriem por trás das grades
À saída um habitante, mais hospitaleiro,
Estendia-me dois bancos, um de cada lado do sepulcro,
Cobertos de musgo e poeira de vestidos velhos
Hoje aceito esse convite e faço-lhe companhia
Pois como não se há-de sentir sozinho quem tem flores maceradas e descoloridas como único elo com o mundo dos vivos?

Adeus, aceno eu com vibrante alegria!
Adeus, ciprestes anciãos deste jardim de pedra!
Adeus, mulher que choras o filho perdido!
Adeus, casal que dorme sob a terra, mas em camas separadas!
Adeus, anjo que reza quem não conhece!
Adeus, flores! E adeus, homem que varres as flores,
Talvez a mais bela das profissões da terra!
Adeus, Cristo na cruz, que estás vivo, dizem-no todos
Mas também todos te enterram várias vezes nas urnas dos cemitérios!
Adeus!
Adeus!
Até amanhã!...

(Tac-q-tá! Tac-q-tá! Tac-q-tá! Roc roc roc roc roc roc!
As rodas da carruagem iniciam o seu movimento circular
Do cemitério, perdido no horizonte, já nem o silêncio ouço
E na verdade já nem a mim mesmo me ouço…)


Sei que ainda durmo; e a dormir me encontro
Sei que também o menino que fui dorme o seu sono na cama fria do que sou
Sei que eu durmo e ele acorda, também, de noite
E passeia ainda revolto no meu coração
Já é órfão, pobre menino
E hoje sou eu quem o leva pela mão
Quem o leva a ver as urnas dos cemitérios
As urnas pálidas e frias dos cemitérios
E que, estendendo-me a máscara de gesso que lhe cobre o rosto,
Convida – experimenta-a!
E desde então que fielmente a uso…

(Deixai o meu rosto dormir, que as máscaras, essas, não cuidam saber ou querer coisa alguma!...)

Ah!... No tempo em que eu era jovem menino
E em que a minha avó voltava dos cemitérios!...


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