quarta-feira, 22 de março de 2017

Elogio da Música


XVIII 

Fazer música é pintar, cantar c'os dedos
É um Sol que brilha à noite sem cessar
É veneno que consome sem matar
É ver a Deus por entre vento e arvoredos...

Fazer música é passar, escalar rochedos
Procurando a perfeição, que é nosso lar
É num campo seco e árido ver o mar
É saber da alma humana os seus segredos...

É por trás deixar a guerra e a paz em frente
Fazer música é crescermos lentamente
Na procura incessante da Verdade;

É a crença em amar eternamente
É seguirmos nossa vida cegamente
Pela grave e forte voz da Liberdade!


domingo, 19 de março de 2017

Creta


Lá em Creta, onde eu fui aportar
Num tempo que passou que já não sei
Quando mais não posso recordar
Passo os dias pensando que sonhei
Aquele dia no qual, enquanto Rei,
Tive a ideia vã de a coroar...

Lá em Creta, quando Heraklion adormece
Penso que talvez deva voltar
(Como se Fortuna tal quisesse!)
A fazer a sua ânfora estalar
E arrisco por momentos imaginar
Pelo que seria agora se o fizesse...

Lá em Creta eu não me sinto, em verdade,
Lá em Creta, minha terra prometida
(Heraklion tem a minha lealdade)
E cantando com a alma adormecida
'Inda é Delphos que minha lira partida
Recorda hoje em sonhos com saudade...

(Passam tempos, passam anos
Desde que eu fui aportar
Lá em Creta, a maior ilha, à beira-mar
Desfeito por meus enganos.
O meu barco não tornou a navegar
No entanto, perdi o meu coração
Quando te vi na estrada para Delphos
Com a ânfora segura à cabeça
E todas as noites, quando Heraklion adormece
Largo o meu ceptro e saio do meu trono
Para assomar à varanda
E canto canções até de manhã
E, porque a fraqueza é condição humana
- fios que tece em vida Ariadne!... -
Co'a minha velha lira em meus braços
E olhando o mesmo céu com olhos baços
Canto ainda os belos olhos de Eliane...)

... Lá em Creta, onde eu fui aportar...
... Lá em Creta, quando Heraklion adormece...
... Lá em Creta, onde eu não me sinto em Creta...
... Lá em Creta, em meu reino à beira-mar...




quinta-feira, 16 de março de 2017

Aganipe e Hipocrene


Ante vós a minha dor, que sois partida!
Drêiades em pedaços me são a vida...

Perdendo uma boa altura de não falar
E pensando não saber que mal fazias
De longe dizeis ser minha eternamente...
Mentis! Que o vento é tua voz, por isso mente!
Créos desde Delphos nos seguiu e tu sabias!
Eu, tolo, fui o fácil plano de vos juntar...

Ruas de aço quente é Hipocrene que envenena
Aganipe, mais suave, é um mal que me condena...

Ai! Já nem me entendo como sou!
A água da tua ânfora, que lhe puseste?
Com que me envenenaste em alto mar?
Corvo infame e vil, sabes nadar?
Que Proteu te funde p'lo que fizeste!
Que te empurre para o Caos que te enviou!

Piso a tua afronta, nada importa, sois passado
Resta-me beber água das fontes como fado...


segunda-feira, 13 de março de 2017

Europa


Vi-te na estrada para Delphos
Com uma ânfora segura à cabeça
A cidade ao longe desvanece-se
Perde-se numa névoa cor de cinza
Já sem cor nas paredes centenárias
A estrada para Delphos
Oculta-se na poeira dos caminhos.

Vi-te na estrada para Delphos
O oráculo repousa ao pé do rio
A ânfora na tua cabeça partira-a eu
Em tempos de que perco a memória
Uma sereia rasga os céus e a estrada
O vento Austro geme cansado
E dá lugar para cantar à minha lira.

Vi-te na estrada para Delphos
Junto a colunas frias de mármore
As flores fecham, os pássaros partem
Créos massivo irrompe das nuvens
O rio passa como o tempo que passa
O nosso barco entra no mar alto
A saudade corta o vento que nos leva...

A luz já não é forte, é fraca e fria
A noite escura e triste acaba o dia,
A sombra de Delphos longe é já perdida;

E mesmo resvalando a terra inteira
O nosso touro é o barco de madeira
E tu a Europa rumo à terra prometida...


sexta-feira, 10 de março de 2017

Édipo


A lira toca e o som expande 
Nada de mais verdadeiro
É o final inevitável
E da mesma forma as cordas
À lira pertencem.
A lira e as cordas são o instrumento
O som expande-se no ar
Vibra nos ouvidos de quem ouve
E nunca será o som a vibrar as cordas
Ou a lira que se toca e as cordas seguras.

A vida surge como verdade inevitável
A vida é areia nos nossos dedos
Escorre por mais que a apertemos
E terá necessariamente que cair.
É esta a força das coisas
Cada qual em sua redoma de vidro
Batendo sem quebrar espera o inalcançável.
Gritando a plena voz não é ouvido
Rezando em vão pelo que não é seu.
O teremos é o que temos.

Contenta-te em ver de longe
Cumpre o que te é permitido
Segue em frente, tu, a vida, sem olhar o lado
Não ligues ao que vês além do vidro.
Acena ao que vês do outro lado.
Sorri com o que terás que é o que tens.
Não rezes ou esperes pelo que queres
Reza e espera pelo que podes.
Não batas no vidro, que podes ferir-te
Nem o sonhes, nem o queiras, nem o olhes.

Caminha, ouve e cega
Tudo o mais é sonho,
Tudo o mais é vidro,
Tudo o mais é nada...


terça-feira, 7 de março de 2017

Prometeu


Branca te vi, quieta, silenciosa e deitada
Um cabelo orna-te os olhos adormecidos
O espaço, mármore áureo com jóias do Cáucaso
                                                                   - é nada...

Sem saberes Hipnos bebeu-te de um sorvo!
A tua boca, semi-aberta em lençóis, cora
Nos teus cabelos negros mortos vejo
                                                                  - um corvo.

É essa a ave que me assombra, senão
Por que teria assomado à minha janela
Senão para roubar o que eu tinha de meu
                                                                  - o coração?

Esperei o salvado! Não veio, eu estava errado.
Acaso se deteria algum semi-deus errante
Para libertar por qualquer crime algum amante
Que mais não é que um Prometeu agrilhoado?




sábado, 4 de março de 2017

Eco


Encostado a colunas dóricas de mármore frio
Estendo os braços ao céu e canto:
"Brancas nuvens, céu azul, sol dourado
Diz-me novas dos olhos daquela que os tem verdes
E que uma vez dada a vida não tira!"
E das nuvens brancas uma voz diz:
         "tira"...

Passeando por entre bosques densos e florestas
Abraço uma árvore com força e murmuro
"Florestas escuras e copas negras
Dizei-me se vistes aquela a quem aos cabelos destes cor
Que encontrei ao acaso e que jamais foge!"
E dos ramos das árvores uma voz diz:
        "foge"...

Caminhando por prados e campos floridos
Aprecio as flores e digo
"Brancas flores, mãe Natureza,
Dizei-me se acaso passou uma filha vossa
Aquela que me tem e que jamais me abandona!"
E de uma flor uma voz disse:
        "abandona"...

Seguindo sem parar o curso de um rio
Olho o horizonte e brado
"Aos seres que habitam as águas, a terra e o céu,
Dizei-me se está um ser que dá pelo nome Eliane
Aquela a quem às nuvens cantei Eliane
Aquela a quem às árvores murmurei Eliane
Aquela a quem às flores chamei Eliane
Que me deu a vida e que jamais morre!"
E do nada uma voz disse
       "morre"...

Eco lança um suspiro...


quarta-feira, 1 de março de 2017

Enigma



Abre uma rosa na neve branca e pura
Envolta em cristais; o vento frio ruge
E adivinhando o destino p'ra que surge
Acorda e remete em rubra doçura
Que a é pelos espinhos, pelo perfume
Desta rosa na neve branca aberta...
O vento ruge e então desperta
A própria luz do Sol que assume
Num raio apesar de apaixonado:
"De tão esquivos olhos não moura e pereça
E embora o coração sofra e sem proveito
Teima em escrever no mármore abandonado
As treze letras que juntou dentro do peito..."