segunda-feira, 22 de maio de 2017

O Número da Fortuna

Juro que sempre quis falar de ti, falar de amor...
Sonhei com que sonhassem o que eu sonhei
E não julguei difícil até ser o sofredor
E não pensei lembrar até hoje o que eu amei...

Pudera eu esquecer o que é sofrer, o que é amar
Sentir que mais não fosse que meu qu'rer
Andar p'lo sentir como alguém que não quer ver
E ter como caminho nada mais que bem-estar
Sem louvar o vil amor como algo que sofrer...

(Basta de vãos sonhos, vãs promessas, más palavras
Basta de querer aceitar uma Fortuna
Carente de afecto, que por isso una
Toda a vil lembrança de tomar acções erradas
Pelo tear de letras, cada verso avança uma
E cuidar que almas não ficam magoadas...)

Menelau perdeu Helena e assim perdeste
Simplesmente por querer fechar do céu
A água da fonte dos enamorados
A água dos que assim estão destinados
A viver pelo fastio, que da lembrança
Pelas veladas águas são tocados...

... Essas águas levaram uma letra e Fortuna já não é...


sexta-feira, 19 de maio de 2017

Era uma Noite


Era uma noite
Era uma noite de fim de Verão
De fim de estação e começo da nova
Aquela estação em que os dias parecem ter mais que vinte e quatro horas
Aquela estação em que não envelhecemos
Aquela estação que parece durar para sempre
E era uma noite de fim de Verão
E em que os sonhos maiores ou mais ingénuos
Pareciam caber na palma da mão...

Era uma noite
Era uma noite de fim de Verão
Os jardins cobriam-se das últimas rosas
E a nossa juventude crescia como nascem as flores`
Nascia como nascem as ondas que embalam os navios
E eu era jovem e tu eras jovem
Perdidos numa noite de fim de Verão
E em que as rosas rubras dos quintais
Pareciam nascer no nosso coração...

Os teus olhos
Os teus olhos que eram duas contas verdes
Eram botões jovens de camélias por florir
Camélias brancas como como eram brancas as nuvens
Que eram céu dos nossos devaneios
Em que os meus olhos eram o espelho dos teus
Os teus olhos, duas camélias por florir
Dois botões, que eram duas contas verdes
Eram o advento da Primavera por vir...

Sorris para mim
É com os teus olhos que sorris para mim
Naquela linguagem muda que só os pobres percebem
Os pobres de palavras que não conhecem as suficientes para se exprimirem
Ou talvez sejam as palavras que são pobres para a riqueza do coração
E sussurras-me ao ouvido melodias que toco ao piano
Não são necessárias palavras, são os dedos que falam
E falam daquilo que pobremente os olhos dizem
Falam de amor e de sonhos em sons que embalam...

Abro-te os braços
Abro-te os braços e escondo o meu rosto no teu peito
Que importa todo o tamanho do mundo
Se podemos criar um mundo ainda maior?
Abres as tuas asas, as tuas grandes asas negras
Pois negro é também o preço deste mundo
São quentes as tuas asas dentro do meu peito
Uma luz ainda assim branca acende e aquece
Pois de o amor ser amor nunca senti de outro jeito...

Mas fomos ingénuos
Mas fomos ingénuos como os jovens o são
Crendo que o Verão poderia durar para sempre
Crendo que todas as ondas embalam os navios
Crendo que os nossos corações eram duas rosas rubras
E crendo que as rosas viveriam para sempre
Mas fomos ingénuos como sempre soubemos ser
Quando o mesmo Verão que nos traz as flores
Com o mesmo calor as pode fazer arder.

Aqueles sonhos
Aqueles sonhos vãos esvaíram-se como fumo
E as nuvens brancas que eram o céu dos nossos devaneios
Trouxeram tempestades que revolveram os mares
Trouxeram tempestades que afundaram navios
E nós, dois tolos, duas criaturas desprovidas de juízo
Atirámo-nos ao mar pelos sonhos que se afogavam
E esquecemo-nos que se esvaíam como fumo
E ventos perdidos que nunca as mãos agarravam.

Olha-me e vê!
Olha-me e vê as minhas mãos cravejadas
As rosas que murchavam agarrei-as com fé
Agarrei-as tanto que foi a minha carne que ficou nos espinhos
E não os espinhos que ficaram na carne
Os cabelos brancos tenho-os na alma, não na cabeça
Da juventude que passou resta o meu rosto
E os meus olhos que foram o espelho de algo mais
Hoje são o espelho de um quarto vazio.

Encolho-me
Encolho-me e durmo, faz frio
Faz frio e passou o Inverno
Que afinal nunca o Verão duraria para sempre
A minha alma é um tapete de camélias maceradas
E as pétalas que recolhi dos teus olhos murchos
Enterrei-as dentro de rocha e terra dura
Na terra e pedra dura que restou dos jardins
Como a única lembrança do tempo das flores.

Os tempos passam; é Verão
E é também uma noite de Verão
Não é uma estação nova, é a mesma todos os anos
É o mesmo que há-de vir quando o meu rosto envelhecer
É o mesmo que trará as flores e que as queimará ele mesmo
E, numa sala perdida, oculta nas sombras
Levanto a tampa do piano que eu sou
A melodia é sempre a mesma, ano após ano
Que ecoa nas paredes frias do meu espírito
E hoje és o anjo negro que dança nos meus sonhos
As pessoas aplaudem, é bonita a música
Felizmente foi mais uma vez que as agradei
Eu levanto-me, agradeço e agarro o meu peito
Quando de sorrir o meu coração já não pode
E é ao ver pétalas perdidas nas teclas brancas do piano
De camélias escuras, sem perfume ou brilho
Que entendo que ainda são os teus olhos murchos que eu toco
Os teus olhos antes verdes como dois botões verdes
Que plantei num canto perdido do meu ser
E no meu coração a rosa rubra que ele foi
(Apercebe-se agora o meu espírito desfeito)
Só resta agora, após sonhar e perder,
Um espinho solitário que mo segura no peito... ...


terça-feira, 16 de maio de 2017

Era uma Tarde


Era uma tarde de Outono quando te encontrei perdida
Era uma tarde de Outono quando te vi junto à fonte
E, suplicante, a voz esbatendo-se com o ar que faltava
Murmurei:
- Tenho sede...

Era uma tarde de Outono quando te encontrei, esbatida
Nos tons rosáceos e rubros do horizonte
E, humilde, estendi-te as mãos, eu suplicava
Murmurando:
- Tenho sede...

Os teus olhos verdes
Os teus líquidos olhos verdes que enfeitavam o teu rosto
Duas gotas de chuva para a minha boca sequiosa
Eram dois sóis que penetravam a minha alma
Verde, verde
Que te murmurava incessante:
- Tenho sede...

O vento passava como o tempo que passa
As folhas caíam como o amor que cai
Espelho de tempos já passados,
Sonhados pelas almas sequiosas
Que os viveram no coração...
As tuas mãos são o bálsamo para o meu rosto cansado
Quando afastas dele a poeira dos caminhos
Porque peregrinei até à tua frente para te dizer que tenho sede,,,

Com as tuas mãos fazes uma concha; mergulha-las na água da fonte
E ergues as tuas mãos à minha boca seca como um cálice
A minha fronte inclina-se no espelho de água que me deste
E, percebendo, afastei as tuas mãos
E olhei-te os olhos dizendo:
- Aqui o que vês sou mais do que eu
Que não quer mais que o amor que é teu
E se, por instantes, vossa mão tocasse
Naquilo que é mais que um corpo que vejo
Sem que minha alma da sede acalmasse
Veríeis vós; não é água que eu desejo
E neste andarilho sem terra, vede
Que só poderei matar minha sede
No cálice húmido e terno de um beijo...


sexta-feira, 12 de maio de 2017

Era de Manhã


Era de manhã.

Era de manhã quando te vi junto às escadas
O verde da relva confundia-se com os teus olhos
E o azul do céu dava cor à minha alma...

... E era de manhã...

Era de manhã quando te vi junto às escadas
Eu olhava-te, tu olhavas-me
E o desejo de tocar a tua alma
Era mais forte que a própria Natureza...

... E era de manhã...

Estendes-me um braço; eu
(Na varanda da qual saíam as escadas)
Estendi o meu, tudo em vão
E, quando pensaste que chovia já,
Notaste serem as minhas lágrimas que caíam da varanda
E bebias as lágrimas que caíam da varanda
E me dizias para não chorar...

Nisto um vento célere limpa as silvas das escadas
Eu limpo as lágrimas, tu esperas em baixo
Coloco um pé, coloco o outro
E,
     Degrau
                    A
                         Degrau,
                                        Cheguei a ti...

(Só quem ama é capaz de entender o ser das coisas
Não saber reconhecer que ar respira
E ter um motivo para chorar...
Só quem ama se afoga noutro sopro
E deixa de ter a percepção das coisas
Onde começas, tu acabas
Não existe... simplesmente é-se...)

Era de manhã quando te vi junto às escadas
E, juntos, reparámos que nunca houve escadas
(Triste ilusão humana,
Que ainda precisa imaginar pontes para chegar onde sempre esteve...)

... E era de manhã...

Era de manhã quando te vi junto às escadas
Era de manhã quando te vi
Era de manhã
Era

(Destruídas as escadas da vida, a verdade resume-se a ser...)


quarta-feira, 10 de maio de 2017

Tanka






A vida é um rio
A brisa filha espalha
Sonhos na noite.

Duas pontes sobre um rio
Assim são dois amantes.

domingo, 7 de maio de 2017

De ti...


De ti não quero as tuas posses
Pois isso quer dizer que morreste;
De ti não quero palavras ternas
Pois isso quer dizer que precisas de te justificar;
De ti não quero que me digas que o que sentes por mim é do tamanho do Mundo
Pois isso quer dizer que é algo tão pequeno que pode ser medido;
De ti não quero juras nem promessas
Pois isso quer dizer que não estás seguro do que queres;
De ti não quero a tua caridade
Pois isso quer dizer que tens pena de mim;
De ti não quero grandes expectativas
Pois isso quer dizer que amas uma imagem;
De ti não quero as tuas orações
Pois isso quer dizer que estou tão mal que nem me podes ajudar;
De ti não quero que olhes para o lado para veres se te acompanho
Pois vou em frente contigo mas não confias em mim;
De ti não quero que julgues que sou fria por te dizer tudo isto
Pois isso quer dizer que não me conheces...

Assim, senta-te comigo num barco de madeira
E não me olhes, ou julgues, ou toques
Nem fales, que a palavra limita a linguagem
E viajemos assim no barco da vida
Esperando que o nosso rio chegue à foz
Navegando sempre na direcção do Sol
E olha simplesmente para a frente comigo
E quando se soltar a última tábua
E se tiver perdido o último remo
Sejamos capazes de repousar por fim
E consigamos ainda sorrir às memórias
E nessa altura, meu irmão, eu serei feliz
Por ter ouvido, um dia, o teu silêncio...

quinta-feira, 4 de maio de 2017

Moça dos Olhos Cinza


Assobio uma canção enquanto caminho sozinho na rua
O mar ao fundo espelha o cinzento do céu
As nuvens passam, lentas, em direcção nenhuma
E eu tiro o relógio do bolso, que continua parado...

(Era perto das onze da noite quando a vi
Unhas mal cortadas, cabelo em desalinho
Lábios gretados, sinal no queixo
Mãos grandes, cheiro a fumo e a bebida
Encostava o corpo magro junto à janela;
Na mão esquerda o cigarro adormecido...)

Chuto uma pedra, tarde aborrecida...!
Uma cameleira ensombra o caminho
Subo o muro da senhora da casa dos gatos
E apanho uma camélia vermelha...

(Riem-se as pessoas, lá fora chove
A minha cadeira geme estando eu sentado
Levanto-me, pouso o copo, puxo-lhe um braço;
Ela apaga o cigarro que atira pela janela
Eu olho-a nos olhos cinza que enfeitam o rosto ossudo
E ela sorri-me com os seus dentes enormes...)

Passo pelos vidros limpos de uma loja
Com as mãos alinho o cabelo, arranjo o casaco
Limpo os sapatos ao musgo das pedras
E olho e torno a olhar a minha boca (espera-se que) limpa...

(Um homem senta-se ao piano com as mãos que tremem
Começa a tocar, ri-se sozinho, as notas ao lado
Ensaio uns passos de dança sem jeito algum
Com um braço seguro-lhe a cinta estreita
Com o outro o pau de braço que ela tem
E ela gira e dança em torno de mim e de si própria...)

Já entro pela porta do café da noite de ontem
A minha cadeira, não a vejo (quiçá partiu-se...)
Sento-me no banco alto do balcão
- A rapariga dos olhos cinza, quem a viu? - Desculpe, por aqui ela não passou...

(Já não existo, já não sou eu, já só é ela!
O vestido roxo está-lhe largo, leva os meus pensamentos
Tão mau cabelo, tão má boca, tão mau corpo
E no entanto toda ela é dança, ar, vento, sonho!
Adoro-a, a ela e ao fumo que ela traz
E, secreto, quero ser o álcool que ela bebe...)

O relógio está parado, não obstante o tempo anda
Como o sei? Pelos copos que já bebi.
Bato com a palma da mão no balcão
- A rapariga dos olhos cinza, quem a viu? - Desculpe, já partiu de madrugada...

(criiiich! click! tick!
Secretamente ouço qualquer coisa a partir-se
Foi comigo, talvez o coração, se o foi por dentro...)

Olhem-me, esta é que foi boa!
Anda um homem a apanhar camélias porque rosas não viu
São vermelhas, disfarçam bem, não se pode querer tudo
Veste o melhor dos casacos como se não tivesse mais velhos para romper
Arranja o cabelo com as mãos porque a água está cara
Limpa os sapatos ao musgo porque não tem nenhuns mais limpos
Nem os mandou limpar porque não tem dinheiro
E talvez até tenha, mas não fica nem com um tostão furado para se consolar
Só porque se perdeu por uma mulher sem eira nem beira!
Olhem que isto já dizia o Poeta muito bem, o mundo anda desconsertado
E enquanto ele se desconserta e conserta ou o que o valha esqueçamos, que a vida é breve...

(Escorre sangue da minha mão, limpo à camisa
Alvíssaras! O coração está inteiro, graças a Deus,
Afinal foi o copo que eu apertei com força.)



segunda-feira, 1 de maio de 2017

Vagão n.º 37/A


É meio-dia, sei-o pelo meu relógio
É meio dia e ainda viajo no vagão 37/A
Ao longe, erguendo os seus troncos nus,
Vejo, esbatidas, as árvores da minha pátria...

Eu estava a ler; que lia eu?
Um livro antigo, o título mal se lê(!)
Mal se abre, mal se desfolha,
As folhas esqueceram o seu lugar e voam pelo vagão
E eu, que não tenho vontade de as apanhar,
Afasto a cortina e olho pela janela.
No meu colo, vermelhas e vistosas,
Levo rosas que trouxe da minha pátria...

No céu voam as aves em -v
Regressam para as suas terras
Só eu me afasto da minha pátria
À medida que me deixo levar pelo vagão 37/A...

37... Tantos anos quantos vivi no meu país...
Pigarreio; da mala tiro a garrafa de vinho
Que bebo sofregamente pelo gargalo.
É amargo, este vinho! Comprei-o dias antes
Lá na loja de vinhos junto à minha casa
Mas continuo a beber enquanto vejo as aves em -v
Por nenhuma razão em especial
-V de vinho, -v de vagão, -v de vício...

Esqueceram-se-me os cigarros...!
Mas como passarei horas sem os cigarros
Para me servirem de ópio do que deixo da minha pátria?
Cruzo a perna, fecho (o que resta) do livro
Cheiro o perfume que resta das rosas
E, olhando teimosamente o horizonte,
Só vejo mar
E mar
E ainda mais mar
E mar outra vez
E ainda tenho tempo de ver mais mar
Olha, há mais mar à frente!
Aposto a vida em como depois daquela curva há mar outra vez!

Mar, mar e mar!
De tanta água ver já fiquei com sede!
Bebo, de novo, mais um golo de vinho...

Ao longe vejo um veleiro
Dos que via nos mares da minha pátria
Uma vez experimentei velejar um, por teima,
Não sabia, o veleiro... pffffiu! Foi-se! Logo mar adentro!
E tive que trabalhar, note-se bem,
Tra-ba-lhar
Com todas as letras
Para pagar a dívida que ganhei...
Hoje vou no vagão 37/A
E levo comigo a última prestação que me "esqueci" (acham que sim?) de pagar.

...
Não tenho comentários
Acho que estou embriagado...
... Xô-xô, gato com três olhos
Que fazes a olhar três vezes para mim?
Não tenho mais nada a dizer, o vinho acabou!

(*risos)

Depois de tudo isto, aprendi hoje algo muito importante:
Enquanto for vivo, não voltarei a beber vinhos da loja ao pé da minha casa...

(*crrrrrrrrrrrrrrriiiiich! klang! ktung!
Um solavanco estremece o vagão 37/A;
Eu desperto do meu sono, engulo em seco
E levanto as malas caídas pelo chão...)

Quanto tempo terá passado?
Sinto-me como se já tivesse corrido quilómetros
E já não sinto o cheiro das rosas...

Olho o meu pulso: não sei as horas, o relógio parou;
Cantarolando entredentes uma canção antiga
Limpo os óculos com a manga do casaco
Fecho a velha cortina e abro o meu livro
Numa página ao acaso (das que ainda restam);
Os meus sonhos dispersam e adormecem
Nos duros bancos de madeira do vagão 37/A
E, maceradas e secas, estreito contra o peito
Aquelas que foram as rosas da minha pátria...