terça-feira, 29 de novembro de 2016

O Tocador de Guitarra

Lá, num beco de Alfama
Lá, onde o fado se amarra
Lá, está a música-chama
Do tocador de guitarra.

É de madeira o seu banco
Onde se senta e descansa
E canta com olhar franco
O que o fado traz de herança.

São seus os versos que dita
É sua a música que canta
É minha aquela hora bendita
É minha a alma que encanta.

Sentado o vejo sozinho
Todo o dia canta o fado;
Um velho copo de vinho
Meio cheio jaz ao lado.

Nisto então, no final,
Com um pano na algibeira
De socas e avental
Chega a sua cantadeira.

Canta-se agora o fado
Pelas ruas de Lisboa
E o tocador, sentado,
Dá-me a dor que o magoa.

A criança portou-se mal,
Cala-se p'lo pai que a manda;
Uma senhora, c'o estendal,
'Stende a roupa na varanda,

Lisboa, que o Sol espanta,
Cidade velha, sem idade
Seu rio é o fado que canta
Suas janelas são saudade.

Passam horas, é dia findo
A cidade já descansa
O Sol forte já amansa
A noite já vai caindo
E o tocador sentado
No seu banco de madeira
Despede a cantadeira
Cessa de tocar o fado

E, lá num beco de Alfama
O tocador de guitarra
Apaga o seu olhar franco
E, sentado no seu banco,
Quando o dia se esvanece
Cessando o fado que amarra
O tocador pousa a guitarra
E, com Lisboa, adormece....


sexta-feira, 25 de novembro de 2016

Quadras ao Gosto Popular

Sonhos com a minha aldeia
Oh, que me deixais assim,
Quanto mais me vem à ideia
Mais me afasto de mim...!

Mais que ter um bom amante
É melhor um bom amigo;
Estas e outras coisas penso
Quando me sento só comigo.

Aquela estátua é perfeita
Só não tem um coração;
- Ó senhores, dai-lhe o meu,
Que é de pedra a Solidão...


Melhor a vida de uma árvore
Que a minha como eu sou:
Estas coisas sei-as eu
E ninguém mas ensinou.

Despedes-te de mim à porta
Com toda a graça que é tua
E entrando o corpo em casa
Deixei minh'alma na rua.

Oh, que moçã tão bonita!
Oh, que olhos de luar!
Oh, que moça tão bonita
Para comigo casar!

Doba, doba, dobadoira
Doba raios de luar
Doba, doba, dobadoira
E minha mãe a chorar!


Chora, chora a minha mãe
E passa a noite a dobar
Por meu pai que já partiu
Que 'inda está em alto mar.

Fui com minha prima à eira
Procurar o milho-rei
Encontrou-o, é Rainha
E eu não me conformei.

Dou-te tudo o que eu sou
Mas não me leves a mal:
O coração não to dou
Que esse é de Portugal!

domingo, 20 de novembro de 2016

O Fadista

Viveu em Lisboa um dia
(Amigo valente da farra)
Certo fadista altaneiro
Com a sua guitarra.

De cabelo solto ao vento
Passeia altivo na rua
E com passo decidido
Pensa que a cidade é sua.

Um pouco por toda a cidade
Que o largo Tejo abençoa
O fadista e a guitarra
Cantam as ruas de Lisboa.

Mas uma manhã de Maio
Quando à janela cantava
Viu uma dama singela
Que à sua porta passava.

Ai, que boca tão vermelha
Ai, os cabelos que tem
Mais seus olhos cor do mar
Que não olham para ninguém!

O xaile que leva aos ombros
Recorda a vida que viveu;
A canastra vai vazia
Hoje nada o mar lhe deu.

Pela noite ou pelo dia
À sua porta passava
E o fadista enamorado
Com a guitarra, cantava.


Mas eis que certo dia
Pela porta não passou
Disse-lhe a maresia:
"Foi o Tejo que a levou".

O fadista, amarga sorte,
Pronto foi a enterrar
E deu lugar ao silêncio
Quando morreu a cantar.

Na varanda do seu quarto
Ficou só, ao abandono,
A sua velha guitarra
Partida, sem cordas, sem dono.

Mas se o corpo é efémero
No fim fica o sentimento
E o fadista morreu
                                                                                    Em profundo desalento.

E ainda hoje o povo conta
(Mas baixinho, de soslaio)
Que pelas manhãs de Maio
À hora que o Sol desponta
O fadista, em lealdade
E não livre da amargura
Já no pó da sepultura
Chora canções de Saudade...


quinta-feira, 17 de novembro de 2016

Trezentos e Quarenta e Três Mil Seiscentos e Vinte e Um


Trezentos e quarenta e três mil
Seiscentos e vinte e um
São os dias de vida da flor cor-de-rosa.

Trezentos e quarenta e três mil
Seiscentos e vinte e um
Tiraram-se uns três mil:
Trezentos e quarenta mil
Seiscentos e vinte e um
E não deixa de ser tempo a mais
Para uma flor cor-de-rosa.

Trezentos e quarenta mil
Seiscentos e vinte e um
Tiraram-se uns seiscentos:
Trezentos e quarenta mil
E vinte e um
E um número deu a mão à vogal.

Sim, "um" número
Porque além de numeral cardinal
Também tem função linguística
(Mas quanto será mesmo um?)

Trezentos e quarenta mil
E vinte e um
Tiraram-se uns quarenta mil:
Trezentos mil
E vinte e um
Sóis viu nascer a flor cor-de-rosa
Quando se abria, irradiava a Lua
Quando fechava, o Sol voltava para a ver...

Trezentos mil
E vinte e um
Tiraram-se uns vinte e um:
Trezentas mil vezes
O colíbri namorou a flor cor-de-rosa
Sem que esta se dignasse a voltar-lhe a corola.
Mas porquê o ar gélido
De uma flor que era o Sol?

Trezentos mil...
Se os tirarmos...
O que fica...?

Trezentos e quarenta e três mil
Seiscentos e vinte e um
São os dias de vida da flor cor-de-rosa
Sem que esta merecesse tempo algum.
Devagar ou depressa
A vida acontece.

Trezentos e quarenta e três mil
Seiscentos e vinte e um
Tiraram-se todos num repente
E porque a vida o consente
O resultado é: nenhum.


domingo, 13 de novembro de 2016

O Gato

Passei o dia e a noite
A correr atrás do gato
Nunca mais o encontrei
Escondeu-se no sapato.

Passeava no pomar
Quando uma maçã caiu:
A culpa é daquele gato
Que lá uma vez subiu.

Surpreendeu-se o gato,
Deu um salto e fugiu:
Toda a noite o procuraram
Nunca mais ninguém o viu.

Fico triste pelo gato
Quando acaba de comer:
Estica as patas, sai p'rá rua
E nem de mim quer saber.

Quando o frio lá fora corta
E está acesa a lareira
O gato estica e adormece
No soalho de madeira.

Estou danada com o gato
Procuro-o p'ra lhe bater:
De tarde partiu a jarra
E fugiu logo a correr.

Gato é Hermes alado
Sempre que lhe apetece:
Nunca dia nunca me larga
Noutro nunca me aparece!

Guardei o vestido novo
Que comprei além na feira:
Este não mo rasga o gato
Nem que esse danado queira!

No sofá fazia malha
Quando me cai um novelo
O gato brincou com ele:
O gosto que me deu vê-lo!

Gato pequeno que brincas
Sozinho co'as pedras da rua
Trata de me deixar passar
Que ela não é toda tua!


quarta-feira, 9 de novembro de 2016

Quem sou eu?


Passeava eu no areal
E o mar perguntou:
- Quem és?

És ser em movimento
Com o movimento dos tempos
Entre tempos que se repetem
Sem deixar de ser diferentes.
És igual a tantos, és diferente de outros
És criação, és criador
És animal em mutação.
És alegria, és tristeza
És ilha, és continente
És mudança permanente
Num mundo que se mantém.
És só tu e és alguém.

És tudo, és nada
Personagem inventada
Para a história da Vida
Não entendo,
Não compreendo,
Com tantas coisas sendo
Ainda não entendi quem és...

Passeava eu no areal
E o mar perguntou:
- Quem és?

- Eu sou.

sábado, 5 de novembro de 2016

Gaivota

Esta noite eu voei...
Não me perguntem como...

Esta noite eu voei...
Voei como voa uma gaivota
No cais, à beira-mar...
Pelo começo da aurora,
Vindos do mar que ignora,
Vê os barcos a chegar...

Esta noite eu voei
Como voa uma gaivota
No cais, à beira-mar...

Num barco eu naveguei:
Não sabendo onde estava
Tomei rota contrária
Ao que a corrente dava...

Esta noite eu voei...
Como voa uma gaivota...
No cais, à beira-mar...

Tenho saudades do tempo
Em que voei nos teus olhos
Como voa uma gaivota
No cais, à beira-mar,
Pelo começar da aurora
Vendo, no mar que ignora,
Meu barquinho a navegar...

terça-feira, 1 de novembro de 2016

...


a tarde passava silenciosa, cinzenta

ainda eu nem nome teria
e mesmo sem experiência de vida
fui eu que te baptizei
e dei-te um nome: 'vó

sim, 'vó e não avó
porque o número de letras não importa
e era de maior jeito um nome mais curto
visto que o chamava muitas vezes

guardo comigo na memória
as histórias que sempre pedia
mas porquê, 'vó, explica-me
por que eram sempre tão tristes?

a tarde passava silenciosa, cinzenta
e caminhando triste no jardim da minha vida
entristeço-me

mas o tempo não pára
árvores já ganharam e perderam folhas
rios já encheram e já vazaram
flores já nasceram e já murcharam

as estações sucedem-se
e, tal como já fui pequena um dia
agora estou grande, cresci
e se visses como estou enorme

tal como o número de letras
também o tamanho não importa
porque ainda continuo a ser
a menina das trancinhas e dos folhos
que fielmente todas as noites
quando o sono custa a chegar
ainda pede como quem pede o mundo
(o meu)
"avó, conta-me uma história"

a tarde passava silenciosa, cinzenta
e caminhando triste no jardim da minha vida
entristeço-me
quando vejo que hoje um banco está vazio