No tempo em que eu era
ainda jovem menino
E o homem grande dormia
dentro de um corpo pequeno
Com minha avó, gentil
senhora,
De braço dado, coração
uno,
Subia a longa escadaria
de pedra e, contente,
Ia visitar o cemitério…
Visitava-o, digo bem
Visitava-o como se visita
um lugar sem ter quem ver
Que a minha avó, doce
senhora,
Só lá entrava por meu avô
Por meu grave e não
saudoso avô
Pois que não se pode
visitar ou suspirar quem não se conhece.
Passava o portão, tudo na
mesma
Que a morte não conhece
nem tem tempo
E em o tendo não é
seguramente o nosso
Todos dormimos para
acordar um dia
Isto dizia a minha avó
Mas se a morte tinha o
tempo de uma noite
E é de noite que os
espíritos visitam as ruas
Não querem ver que
andamos enganados
E o Sol não é mais que a
Lua dos que morrem!...
No tempo em que eu era
ainda um jovem menino
E queria acordar o homem
grande que dormia
Sonhava de dia e acordava
de noite
Meu pai ralhava, minha
mãe suspirava
E minha avó perguntava
por que andava ao contrário
- Não ando ao contrário,
ando direito
Que há mais mortos que
vivos no mundo
E se eles são mais e a
maioria sai de noite
Devo seguir a maioria,
que é quem deve ter razão…
A minha avó dobra-se:
arranja as flores
Arranja as flores que
morrem com o dia que passa
Sabem que vão morrer,
essas flores
E tal como aqueles a quem
se destinam
São enterradas também nas
urnas dos cemitérios
Nas urnas frias e pálidas
dos cemitérios
Naquela cama branca como
um lençol…
(Sempre achei haver
destinos melhores para flores mortas
Haver urnas melhores para
flores mortas
Que não fossem as campas
que não são as suas
Mas são mais felizes que
os mortos que nelas dormem
Pois esses não tiveram o
Sol que lhes desse o último beijo desta vida
Tão tapados estão pelo
mármore dos cemitérios…)
No tempo em que eu era
ainda um jovem menino
Cuja inocência secava
como secam as flores em cemitérios
Cria haver cemitérios
mais simpáticos que outros.
Hoje ainda visito
cemitérios
E agora sei que os seus
inquilinos são todos iguais:
Pobres figuras paradas,
olham-nos por detrás das grades dos sepulcros
E todos usam as mesmas
estátuas para lhes dar um rosto que já não têm.
Hoje já não sou um jovem
menino
E aceitei ser um homem
grande, que é dizer
Ser-se uma urna andante
de um morto que respira
A urna andante do menino
que eu já fui
E que me aparece em sonhos
num busto de cera como o dos cemitérios…
Lembro-me daquelas tardes
lentas e brilhantes
Em que, perdido no
silêncio de minha avó,
Admirava os magistrais
sepulcros que ornavam o cemitério
“Um dia quero viver numa
casa assim” pensava eu
Hoje sei que não é
necessário uma casa assim nem estar-se morto
E que também em casas de
vivos vivem tantas vezes mortos!...
(A vida ensina-nos a
morrer, alguém me dissera um dia
Talvez por isso tantos
morram antes de morrer
Ensaiando com afinco
antes do concerto final
Infelizmente nunca fui
bom concertista…)
Tomam-me pela mão: é
minha avó que se alevanta
Que se alevanta com a
dignidade com que sempre foi a minha avó
A dignidade pálida e
séria como uma estátua das que eu via em cemitérios
Eu ergo a cabeça,
levanto-me por meu pé
E retorno pelo mesmo
caminho de pedra polida
Deixo atrás de mim os
bustos, as camas frias
Deixo atrás de mim as
máscaras que sorriem por trás das grades
À saída um habitante,
mais hospitaleiro,
Estendia-me dois bancos,
um de cada lado do sepulcro,
Cobertos de musgo e
poeira de vestidos velhos
Hoje aceito esse convite
e faço-lhe companhia
Pois como não se há-de
sentir sozinho quem tem flores maceradas e descoloridas como único elo com o
mundo dos vivos?
Adeus, aceno eu com
vibrante alegria!
Adeus, ciprestes anciãos
deste jardim de pedra!
Adeus, mulher que choras
o filho perdido!
Adeus, casal que dorme
sob a terra, mas em camas separadas!
Adeus, anjo que reza quem
não conhece!
Adeus, flores! E adeus,
homem que varres as flores,
Talvez a mais bela das
profissões da terra!
Adeus, Cristo na cruz,
que estás vivo, dizem-no todos
Mas também todos te
enterram várias vezes nas urnas dos cemitérios!
Adeus!
Adeus!
Até amanhã!...
(Tac-q-tá! Tac-q-tá!
Tac-q-tá! Roc roc roc roc
roc roc!
As rodas da carruagem iniciam
o seu movimento circular
Do cemitério, perdido no
horizonte, já nem o silêncio ouço
E na verdade já nem a mim
mesmo me ouço…)
Sei que ainda durmo; e a
dormir me encontro
Sei que também o menino
que fui dorme o seu sono na cama fria do que sou
Sei que eu durmo e ele
acorda, também, de noite
E passeia ainda revolto
no meu coração
Já é órfão, pobre menino
E hoje sou eu quem o leva
pela mão
Quem o leva a ver as
urnas dos cemitérios
As urnas pálidas e frias
dos cemitérios
E que, estendendo-me a
máscara de gesso que lhe cobre o rosto,
Convida – experimenta-a!
E desde então que
fielmente a uso…
(Deixai o meu rosto
dormir, que as máscaras, essas, não cuidam saber ou querer coisa alguma!...)
Ah!... No tempo em que eu
era jovem menino
E em que a minha avó
voltava dos cemitérios!...
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